META-ARQUIVO: 1964-1985 | Exposição no Sesc Belenzinho criará espaço de escuta e leitura de Histórias da Ditadura

Exposição aborda, por meio de nove obras inéditas, importância da preservação dos acervos de documentos relacionados à história do Brasil

A partir de 22 de agosto de 2019, o Sesc São Paulo apresenta, na unidade Belenzinho, a exposição Meta-Arquivo: 1964-1985 – Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura. Com curadoria e pesquisa de Ana Pato e em parceria com o Memorial da Resistência, a mostra reúne nove obras inéditas, elaboradas por Ana VazGrupo ContrafiléO grupo inteiroGiselle BeiguelmanÍcaro LiraMabe BethônicoPaulo NazarethRafael Pagatini e Traplev, e que seguem expostas até o dia 24 de novembro de 2019.

Com caráter pedagógico, a exposição surge como um espaço expandido de aprendizado, cujo objetivo primordial é despertar a reflexão acerca da documentação pública arquivada pelo Estado Brasileiro: como ler esses arquivos? Como construir memória a partir deles? Como aprender coletivamente sobre a história do país e de seu povo, a partir de sua análise? Como preservar esses acervos e, como consequência, a memória dos processos civilizatórios que alicerçam a sociedade atual?

Tais ponderações nortearam a gênese da exposição, a partir do programa de ação curatorial Arquivo e Ficção, desenvolvido por Ana Pato desde 2014, que busca valorizar os processos de construção da história brasileira. Sua metodologia de trabalho consiste na articulação de pesquisas artísticas e na formação de grupos de trabalho em torno de arquivos e acervos, diante da invisibilidade, do abandono e do risco de desaparecimento que os acervos documentais e artísticos vivenciam.

Um desses grupos de trabalho se consolidou em julho de 2018, tendo como foco de pesquisa o período da Ditadura Civil Militar Brasileira (1964-1985), formado pela curadoria, os artistas e a equipe do Memorial da Resistência. Os artistaspassaram a desenvolver uma ação artística junto a esses arquivos, que culminou nas obras que serão apresentadas na exposição. Criadas a partir desses documentos históricos, tais obras visam trazer à discussão os processos que levam ao apagamento da memória – e a importância de se manter relevantes e presentes os acervos documentais da história.

Dentre as fontes consultadas para construção dessas obras estão o Arquivo Público do Estado de São Paulo, Arquivo Nacional, Brasil: Nunca Mais digit@l, Memorial da Resistência de São Paulo, Centro de Documentação e Memória da Unesp, Instituto Vladimir Herzog, Museu do Índio, Sesc Memórias, Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) – Unifesp, Fundación Augusto y León Ferrari Arte y Acervo, entre outros centros de memória, arquivos, institutos e fundações. Seu desenvolvimento partiu de temas específicos, norteado pelas questões: “como construir um arquivo?”, “como torná-lo público?” e “como falar do trauma?”.

Todo o conjunto foi reunido em um projeto arquitetônico desenvolvido por Anna Ferrari, cujas estruturas metálicas aparentes atravessam o galpão expositivo do Sesc Belenzinho, fixadas entre o piso e o teto, enquadrando as obras e suas superfícies em madeira. A estrutura sem paredes permite a sobreposição das histórias ali apresentadas e faz referência ao mobiliário arquivístico e escolar.

A exposição conta também com o Espaço de Pesquisa Meta-Arquivo, que disponibiliza ao público a consulta dos livros, documentos e referências levantados durante o processo de pesquisa dos artistas. Esse material, coletado pelo grupo de trabalho, foi reunido pela curadoria em dossiês e organizado como uma pequena biblioteca.

Os temas abordados ao longo do período expositivo serão complementados com os Programas Públicos,formados por uma série de atividades propostas para aprofundamento e reflexão acerca das pesquisas realizadas pelos artistas presentes em Meta-Arquivo: 1964-1985, e a Programação Integrada que, de agosto a novembro, traz atividades diversas que dialogam com os assuntos abordados pela exposição.

AS OBRAS

Ana Vaz, na obra Apiyemiyekî? [Por quê?], aborda questões como a marcha para o centro-oeste e o genocídio do povo Waimiri-Atroari, durante a década de 1970, quando suas terras foram invadidas para a construção da BR 174 (rodovia que liga Manaus-AM à Boa Vista-RR) e instalação de uma mineradora. A obra, criada a partir de filme em 16mm e transferida para vídeo, destaca ilustrações criadas pelos indígenas sobre o período.


Giselle Beiguelman com a instalação Gaveta de Ossos (áudio e jato de tinta sobre papel algodão) reflete sobre as histórias reveladas pela medicina forense e seus procedimentos na busca de mortos e desaparecidos. Tal trabalho é reflexo do acompanhamento do grupo de trabalho sobre a Vala de Perus, descoberta no Cemitério Dom Bosco, em 1990, com 1.047 ossadas enterradas clandestinamente. A obra é complementada por Perguntas às Pedras, Série 2 (neon), jogo no qual se interroga: “O que você esqueceu de esquecer?”, “o que você esqueceu de lembrar?”, “o que você lembrou de esquecer?” e “o que você lembrou de lembrar?”. Ainda na exposição, e problematizando questões sobre arte, arquivo e história, a artista apresenta a publicação Impulso Historiográfico (impressão offset, 50 pps) uma tradução, em forma de paráfrasedo texto ainda inédito em português, “An Archival Impulse”, de Hal Foster, publicado na revista estadunidense de crítica de arte October.


Grupo Contrafilé traz a obra Escola de Testemunhos, com um espaço formado por uma mesa-lousa redonda, quinze cadeiras escolares e fones de ouvido, onde serão reproduzidos relatos pertencentes ao arquivo do programa Coleta Regular de Testemunhos – projeto do Memorial da Resistência de São Paulo para ampliar o conhecimento sobre a história do DEOPS – Departamento Estadual de Ordem Política e Social. Tais testemunhos partem de ex-presos e perseguidos políticos, de familiares de mortos e desaparecidos ou de trabalhadores e frequentadores dessa instituição.


Ícaro Lira apresenta Crítica Radical, uma estrutura biográfica formada a partir de fotos, recortes de jornais, áudio, objetos e vídeo que revisita a memória viva do grupo cearense, cuja alcunha dá nome a sua obra. Formado em Fortaleza em 1973, o Crítica Radical teve importante papel na fundação do Movimento Feminino pela Anistia, nos anos 1970, essencial para a formulação da Lei de Anistia, de 1979 (Lei nº 6.683/79). Várias integrantes do movimento fundaram, posteriormente, a União das Mulheres Cearenses, ainda ativa, que luta contra a violência de gênero, contra o feminicídio e pela solidariedade às vítimas de violência e suas famílias.


Mabe Bethônico, com a obra Elite Mineral [Gabinete de Aprendizado] traz, por meio de impressos e vídeos, o estudo da atuação de empresas mineradoras no período da Ditadura Civil Militar e a memória do evento Semana Popular em Defesa ao Minério, realizada na década de 1960, em Minas Gerais. O trabalho toma a forma de um “gabinete de aprendizado” para transmissão de conteúdos, buscando resgatar meios pedagógicos dos anos 1960, como cartilhas e cartazes, tomando como referência materiais do programa de alfabetização de adultos do Movimento de Educação de Base, elaboradas em convênio com o Ministério da Educação (MEC), que visava educar o adulto para exercer seus direitos, além de ensinar a escrever.

O grupo inteiro, formado por Carol Tonetti, Cláudio Bueno, Ligia Nobre e Vitor César discute os sistemas de informação e vigilância do Estado. Com referências ao conto Na Colônia Penal (1914), de Franz Kafka, a peça instalativa Texto-Tecido-Teia, em tricô e metal, parte de palavras/ações/verbos encontrados nas apostilas de formação dos agentes do Serviço Nacional de Informações – SNI, órgão criado em 1964 para controlar as atividades de informação e contrainformação no Brasil e no exterior, visando à segurança nacional.  Palavras como nomearinfiltrarmanipular e interrogar fazem parte do universo vocabular da obra.

A semântica dos inquéritos policiais e a criminalização de negros e negras são tratadas por Paulo Nazareth na obra Inquérito, que apresenta uma leitura de inquéritos policiais, gravados em colaboração com os artistas Michelle Matiuzzi e Ricardo Aleixo. No espaço, estará disposta a série de desenhos de Nazareth, denominadas Histórico do Camburão, com representações desse automóvel e a série de fotografias Autorretrato com os Mortos.

Rafael Pagatini, com a instalação Tecituras, traz imagens queabordam as relações entre o setor cultural e a esfera política durante o período da ditadura, as histórias e mecanismos de colaboração entre o universo cultural e o regime ditatorial, e de como se desenvolveram e se financiaram as instituições de arte nesse período. A obra é um desdobramento da pesquisa que realizou nos arquivos do Centro de Pesquisa e Biblioteca do Masp, Centro de Documentação da Pinacoteca de São Paulo e Acervo do Memórias do Sesc.

Arma da Crítica / Orientação para a Prática, obra desenvolvida por Traplev, partiu de extensa pesquisa em arquivos, como do Brasil: nunca mais (1979-1985), projeto realizado clandestinamente pela sociedade civil, por iniciativa do Conselho Mundial de Igrejas e da Arquidiocese de São Paulo, que se debruçou nas mais de 850 mil páginas de processos do Superior Tribunal Militar. O nome da instalação traz dois títulos de documentos do MR8, de 1970, e apresenta dois painéis, em lados opostos, com organogramas pertencentes ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS): um sobre organizações de esquerda e outro sobre órgãos de repressão. Traplev também apresenta Antimonumento para Anísio Teixeira (2018), que traça linha histórica a partir da Escola Parque Anísio Teixeira.

PROGRAMAS PÚBLICOS


Ao longo do período expositivo, diversas atividades serão propostas para aprofundamento das temáticas apresentadas na exposição Meta-Arquivo: 1964-1985. No dia 22 de agosto, quinta, às 18h, o bate-papo Encontro com Artistas – Apresentação dos Processos de Pesquisa marca o encerramento do Grupo de Trabalho Meta-Arquivo, com participação de Ana Pato e de todos os artistas envolvidos na exposição, e apresentação de seus processos de pesquisa ao longo da produção das obras.


Ainda no dia 22, ocasião da abertura da exposição, Paulo Nazareth apresenta, às 20h30,a performance Inquérito, ação na qual reproduzirá, a partir de uma matriz em pedra de litogravura, um documento dos militantes do Comando Nacional da VAR-Palmares encontrado em um “aparelho”, que ensina como sobreviver à tortura. Um escrivão aposentado, em uma mesa de delegacia, datilografará o documento que ficará exposto como resíduo da ação.

No dia 24 de agosto, sábado, às 15h, haveráo encontro Memória e Resistência, com o artista Ícaro Lira e o grupo Crítica Radical (CE), representado pelas integrantes Rosa da Fonseca, Maria Luiza Fontenele e Jorge Paiva, que se reúnem para uma fala pública; às 16h30, o encontro  Memória e Resistência com Traplev e a escritora, feminista e membro da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos Amelinha Teles, queabordam a memória das organizações clandestinas do período de 1960-1970 que lutaram contra a ditadura militar no Brasil; já às 18h, o encontro Mineração e Ditadura, que traz uma aula pública com Mabe Bethônico. A partir de pesquisa sobre a atuação de empresas mineradoras durante a ditadura militar brasileira, Mabe Bethônico, em colaboração com o artista Victor Galvão, apresenta uma aula pública com a convidada Ana Carolina Reginatto Moraes, doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com a tese A Ditadura Empresarial-militar e as Mineradoras (1964-1988).

A programação segue até o fim de novembro com as atividades:


Escola de Testemunho (dias 7/9, 5/10 e 9/11, sábados, 16h): Aula-performance com o Grupo Contrafilé e convidados. Em três encontros, os integrantes do Grupo Contrafilé realizam conversas abertas entre o público e os depoentes da Coleta Regular de Testemunhos, iniciativa do Memorial da Resistência.

Impulso Historiográfico (dias 7/9 e 23/11, sábados, 18h): Aula-performance com Giselle Beiguelman e lançamento de livro. Giselle Beiguelman toma como ponto de partida o texto, ainda inédito em português, An Archival Impulse, de Hal Foster, publicado na revista estadunidense de crítica de arte October. Beiguelman propõe uma tradução, em forma de paráfrase e fac-símile, indagando, a partir da obra dos brasileiros Bruno Moreschi, Bianca Turner e Tiago Sant’ana, o impulso historiográfico, que levaria os artistas do Sul Global contemporâneo de volta à história e ao (re)processamento dos documentos.


A Ditadura nos Vernissages: Construção Hegemônica e Relações de Controle em Espaços Culturais de São Paulo (dia 5/10, sábado, 18h): Encontro com Rafael Pagatini e Paulo César Gomes, historiador e autor do livro Liberdade Vigiada – as Relações entre a Ditadura Militar Brasileira e o Governo Francês.

Memória e Resistência (dia 9/11, sábado, 18h): Encontro com Traplev e Marília Bonas.

A partir de sua pesquisa sobre a memória das organizações clandestinas do período de 1960 a 1970 que lutaram contra a Ditadura Civil Militar no Brasil, Traplev propõe uma conversa com Marília Bonas, historiadora e coordenadora do Memorial da Resistência de São Paulo.

PROGRAMAÇÃO INTEGRADA

Dentre as atividades que dialogam com a exposição, o Sesc Belenzinho apresenta a temporada do espetáculo teatral Comum, do Grupo Pandora de Teatro, de 30 de agosto a 15 de setembro, com histórias ligadas à descoberta de uma vala comum clandestina, criada no período da Ditadura Militar Brasileira. Com texto e direção de Lucas Vitorino, o enredo traz a busca de um filho por informações de seus pais desaparecidos políticos, o dilema de dois coveiros encarregados da criação de uma vala e uma jovem estudante que se aproxima do ativismo político, em três períodos históricos diferentes, entre 1970 e 1990.

De 30 de agosto a 8 de setembro, a Cia Estável de Teatro apresenta o espetáculo Patética que, por meio de estética circense, reflete sobre as circunstâncias e o assassinato do jornalista e dramaturgo Vladimir Herzog (1937-1975), morto nos porões do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna) em outubro de 1975. O texto foi escrito um ano depois de seu falecimento, por seu cunhado e também dramaturgo João Ribeiro Chaves Neto.

De 11 de setembro a 2 de outubro, o curso O Documentário como Arquivo da Ditadura, ministrado por Liniane Haag Brum, aborda a história política contemporânea por meio da linguagem audiovisual e cinematográfica, propondo o arquivo como conceito

transdisciplinar e como método. 

Por fim, haverá a exibição de quatro filmes originalmente censurados durante o período da ditadura: em 10 de setembroO Bandido Da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, Brasil, 1968); em 17 de setembroEles não Usam Black‑Tie (Leon Hirszman, Brasil, 1981); em 24 de setembroPra Frente, Brasil (Roberto Farias, Brasil, 1982) e, em 1º de outubroCabra Marcado Para Morrer (Eduardo Coutinho, Brasil, 1984).

SOBRE O MEMORIAL DA RESISTÊNCIA

O Memorial da Resistência de São Paulo é uma instituição de memória política constituída a partir de parceria entre sociedade civil organizada e Estado. Seu trabalho consiste na preservação de referências das memórias da resistência e da repressão políticas do Brasil republicano (1889 à atualidade), na valorização da democracia e dos Direitos Humanos por meio de suas pesquisas, exposições e ações educativas. É gerido pela Associação Pinacoteca Arte e Cultura e localizado na Estação Pinacoteca, antigo edifício do Departamento de Ordem Política e Social – Deops-SP. O Memorial da Resistência é uma Organização Social da Cultura, vinculado à Associação Pinacoteca Arte e Cultura – APAC. Desde 2009, é Membro Institucional da Coalizão Internacional de Sítios de Consciência, uma rede mundial que agrega instituições em lugares históricos dedicados à preservação das memórias de eventos passados de luta pela justiça.

SERVIÇO
Exposição:
META-ARQUIVO: 1964–1985 – Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura
Abertura: 22 de agosto de 2019, quinta-feira, às 20h
Visitação: 23 de agosto a 24 de novembro de 2019
Terça a sábado, das 10h às 21h. Domingos e feriados, das 10h às 19h30
Local: Galpão 
Grátis 
Livre para todos os públicos

Sesc Belenzinho
Endereço: Rua Padre Adelino, 1000.
Belenzinho – São Paulo (SP)
Telefone: (11) 2076-9700
www.sescsp.org.br/belenzinho

Sobre Emílio Faustino

Formado em jornalismo, atua na área há mais de 15 anos. Amante da sétima arte, no YouTube apresenta o canal EmpoderadXs onde entrevista atores, diretores e ativistas. Atuou em empresas como Rede Globo e UOL, sempre com enfoque em cultura e ativismo. É diretor executivo e fundador do site EmpoderadXs, onde promove a união de minorias sociais e realiza seu sonho de dar voz para quem precisa.