Na opinião do historiador, a cantora erra em seu filme álbum visual ao associar a valorização do povo preto a sistemas de opressão
Nessa segunda-feira (03) uma discussão em torno no novo trabalho de Beyoncé tomou forma nas redes sociais. Lilia M. Schwarcz (antropóloga, historiadora, professora da USP e professora visitante em Priceton), uma mulher branca, criticou alguns aspectos de Black Is King.
O texto de Schwarcz, após tecer elogios ao trabalho de Beyoncé, apontou de forma crítica para aspectos do mesmo como a glamorização da África, a valorização da identidade negra associada ao capitalismo, imperialismo ou a monarquias e a luta antirracista feita somente por viés estético. Schwarcz escreveu :
“Diva pop precisa entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”.
Várias personalidades do movimento negro no Brasil, como a cantora Iza, a jornalista Tia Má, a apresentadora e roteirista Lua Xavier, usaram seus perfis na internet para manifestar sua insatisfação com o texto da colunista da Folha de S. Paulo. Segundo essas personalidades, Lilia não está em seu lugar de fala e não deve ensinar a uma mulher preta sobre como falar de sua ancestralidade.
No entanto, tratando-se de lugar de fala, de glamorização da África. Tratando-se da concepção da importância do povo preto a partir de ideais capitalistas, imperialistas e mesmo monárquicas, como é o caso de alguns aspectos de Black Is King, a afro-política, feminista, teórica e pensadora negra Judicaelle Irakoze em seu artigo “Por que devemos ter cuidado ao assistir Black Is King de Beyoncé” aponta que :
“Existe um perigo real em romantizar a África pré-colonial. A glorificação dos reinos antes dos homens brancos nos encontrarem apaga a realidade de que a África não era exatamente um paraíso”.
Judicaelle segue afirmando :
“Os reinos africanos estavam cheios de escravidão, imperialismo, opressão de mulheres e opressão de classe. Nem todo mundo era um rei ou mesmo uma rainha. Mais importante, nem todas as pessoas negras nos países africanos tinham o potencial de nascer em uma família real ou acessar seus benefícios”.
Irakoze, após ressaltar a importância do trabalho da diva do pop, ainda diz que “Beyoncé pode amar de uma forma melhor a África criando arte descolonizante que diz aos negros que não precisamos ser associados a uma monarquia para importar”.
Lilia foi extremamente equivocada nos termos que usou ao se referir ao trabalho de Beyoncé. Foi criticada, mas também lhe foram mostrados caminhos para repensar tais erros. A crítica e o diálogo servem para isso mesmo. A antropóloga e historiadora se desculpou através de suas redes sociais.
Entretanto, tendo como base o trabalho de Judicaelle Irakoze, não é possível desconsiderar os apontamentos feitos pela mesma. O trabalho de Beyoncé grita representatividade, grita um olhar diferenciado sobre o povo preto, seus mitos e suas essências, e esse grito é ouvido e recebido com emoção, significado e força por aqueles e aquelas que se veem representados (as).
Beyoncé em sua trajetória é um grito político que representa muitas dores, alegrias e demandas do povo preto. No entanto, ainda levando em consideração o que foi discutido acima, a diva não é perfeita, seu trabalho não é perfeito e irretocável, não está livre de críticas.
Falar de ancestralidade é falar sobre o legado político, cultural, artístico e de luta, sobre as belezas e a estética dos nossos ancestrais, como Bey faz. É falar sobre os sofrimentos e mazelas, sobre as injustiças vivenciadas pelo povo preto. É falar sobre tudo que nos foi tirado. Mas, para além disso, falar de ancestralidade talvez seja também relembrar os sistemas de opressão antes do homem branco e após ele que nos puseram e lugar subalterno, e nesse sentido, se opor a tais sistemas.
Afinal, o povo preto não foi escravizado somente por ser preto, mas sim pela necessidade de exploração de sua força de trabalho pelos sistemas vigentes à época. Construiu-se aí uma ideologia para subordinar o povo preto e aí estão as raízes do racismo.
Na luta antirracista é preciso relembrar o passado. Quais sistemas nos oprimiram? É necessário compreender o racismo estrutural, tal como é. Um racismo que serve ao capitalismo e é mantido por ele, um racismo que serve às elites. É preciso entender o presente e projetar o futuro. Um futuro não mais monárquico de reis e rainhas, não imperialista, não mais capitalista. Projetar um futuro mais igual e justo. Afinal, é por isso que lutamos.