Black Is King | Beyoncé errou sim e historiador negro explica o porquê

Na opinião do historiador, a cantora erra em seu filme álbum visual ao associar a valorização do povo preto a sistemas de opressão

Nessa segunda-feira (03) uma discussão em torno no novo trabalho de Beyoncé tomou forma nas redes sociais. Lilia M. Schwarcz (antropóloga, historiadora, professora da USP e professora visitante em Priceton), uma mulher branca, criticou alguns aspectos de Black Is King.

O texto de Schwarcz, após tecer elogios ao trabalho de Beyoncé, apontou de forma crítica para aspectos do mesmo como a glamorização da África, a valorização da identidade negra associada ao capitalismo, imperialismo ou a monarquias e a luta antirracista feita somente por viés estético. Schwarcz escreveu :

“Diva pop precisa entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”.

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Como tudo que Beyoncé faz, seu novo álbum visual, Black is a king, chega causando polêmica e trazendo muito barulho. Ele se baseia no projeto The Lion king: the gift, álbum de 2019, lançado conjuntamente com o filme da Disney. Nele, a cantora e compositora retoma a história clássica de Hamlet, personagem icônico de Shakespeare, mas a ambienta em algum lugar perdido do continente africano.O Hamlet de Shakespeare se passa na Dinamarca e conta a história do príncipe que tem como missão vingar a morte de seu pai, o rei, executado pelo próprio irmão, Cláudio. Traição, incesto e loucura são temas fortes da trama e da própria humanidade, de uma forma geral. Já a versão da Disney é ambientada na África e tem como personagem principal uma matilha de leões – os “reis dos animais”. No enredo, o filho Simba, herdeiro do trono, instado pelo irmão invejoso, desobedece o pai e, não propositadamente, acaba sendo o pivô da morte dele e de um golpe de Estado. O tema retoma a culpa edipiana do filho que não conseguindo vingar ou salvar o pai, perde seu prumo na vida e esquece sua história. Já Beyoncé, evoca mais uma vez a tragédia de Hamlet, mas inverte a mão da narrativa. Simba vira um menino negro que procura por suas raízes para conseguir sobreviver no mundo racista norte-americano de 2020. Só não era necessário esteriotipar dessa maneira uma África isolada e perdida no mundo com muitos leopardos e oncinhas. Melhor Beyoncé sair da sua sala de estar e tomar mais ar de realidade. (Matéria completa na Ilustrada, Folha de. S Paulo)

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Reprodução instagram: Lilia M. Schwarcz

Várias personalidades do movimento negro no Brasil, como a cantora Iza, a jornalista Tia Má, a apresentadora e roteirista Lua Xavier, usaram seus perfis na internet para manifestar sua insatisfação com o texto da colunista da Folha de S. Paulo. Segundo essas personalidades, Lilia não está em seu lugar de fala e não deve ensinar a uma mulher preta sobre como falar de sua ancestralidade.

No entanto, tratando-se de lugar de fala, de glamorização da África. Tratando-se da concepção da importância do povo preto a partir de ideais capitalistas, imperialistas e mesmo monárquicas, como é o caso de alguns aspectos de Black Is King, a afro-política, feminista, teórica e pensadora negra Judicaelle Irakoze em seu artigo “Por que devemos ter cuidado ao assistir Black Is King de Beyoncé” aponta que :

“Existe um perigo real em romantizar a África pré-colonial. A glorificação dos reinos antes dos homens brancos nos encontrarem apaga a realidade de que a África não era exatamente um paraíso”.

Judicaelle segue afirmando :

Os reinos africanos estavam cheios de escravidão, imperialismo, opressão de mulheres e opressão de classe. Nem todo mundo era um rei ou mesmo uma rainha. Mais importante, nem todas as pessoas negras nos países africanos tinham o potencial de nascer em uma família real ou acessar seus benefícios”.

Irakoze, após ressaltar a importância do trabalho da diva do pop, ainda diz que “Beyoncé pode amar de uma forma melhor a África criando arte descolonizante que diz aos negros que não precisamos ser associados a uma monarquia para importar”.

Reprodução instagram: Judicaelle Irakoze

Lilia foi extremamente equivocada nos termos que usou ao se referir ao trabalho de Beyoncé. Foi criticada, mas também lhe foram mostrados caminhos para repensar tais erros. A crítica e o diálogo servem para isso mesmo. A antropóloga e historiadora se desculpou através de suas redes sociais.

Reprodução instagram: Lilia M. Schwarcz

Entretanto, tendo como base o trabalho de Judicaelle Irakoze, não é possível desconsiderar os apontamentos feitos pela mesma. O trabalho de Beyoncé grita representatividade, grita um olhar diferenciado sobre o povo preto, seus mitos e suas essências, e esse grito é ouvido e recebido com emoção, significado e força por aqueles e aquelas que se veem representados (as).

Beyoncé em sua trajetória é um grito político que representa muitas dores, alegrias e demandas do povo preto. No entanto, ainda levando em consideração o que foi discutido acima, a diva não é perfeita, seu trabalho não é perfeito e irretocável, não está livre de críticas.

Beyoncé usa D.Bleu.Dazzled – Foto: Divulgação

Falar de ancestralidade é falar sobre o legado político, cultural, artístico e de luta, sobre as belezas e a estética dos nossos ancestrais, como Bey faz. É falar sobre os sofrimentos e mazelas, sobre as injustiças vivenciadas pelo povo preto. É falar sobre tudo que nos foi tirado. Mas, para além disso, falar de ancestralidade talvez seja também relembrar os sistemas de opressão antes do homem branco e após ele que nos puseram e lugar subalterno, e nesse sentido, se opor a tais sistemas.

Afinal, o povo preto não foi escravizado somente por ser preto, mas sim pela necessidade de exploração de sua força de trabalho pelos sistemas vigentes à época. Construiu-se aí uma ideologia para subordinar o povo preto e aí estão as raízes do racismo.

Na luta antirracista é preciso relembrar o passado. Quais sistemas nos oprimiram? É necessário compreender o racismo estrutural, tal como é. Um racismo que serve ao capitalismo e é mantido por ele, um racismo que serve às elites. É preciso entender o presente e projetar o futuro. Um futuro não mais monárquico de reis e rainhas, não imperialista, não mais capitalista. Projetar um futuro mais igual e justo. Afinal, é por isso que lutamos.

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