Caça aos putos | Por que temos uma comunidade gay tão ferozmente moralista?

Recentemente dois episódios envolvendo pessoas que possuem relacionamento não monogâmico foram notícia e a reação da comunidade LGBTQIA+ (quase exclusivamente dos gays) escancararam um moralismo ferrenho que beira a inquisição

“Ninguém solta a mão de ninguém”, “Todos contra o fascismo”, stickers declarando votos em partidos progressistas, filtros de apoio a comunidade LGBT… esses acessórios estavam presentes em inúmeros perfis de Facebook, Twitter e Instagram que não perderam tempo em destilar ódio e moralismo na última semana.


O relato de Murilo Marques, Ex-Bake Off Brasil, sobre o crime que sofreu devia ser capaz de chocar e gerar empatia em qualquer pessoa minimamente decente. O rapaz foi drogado, estuprado e roubado, atingindo prejuízos de cerca de 40 mil e marcas psicológicas que levarão anos para curar.

Mas empatia e apoio não foram as características que predominaram nos comentários da publicação original ou dos veículos de notícias. O ponto central se tornou o fato de Murilo possuir um relacionamento aberto e ter marcado um encontro pelo Grindr.

“Não tá satisfeito com o namorado e fica caçando em app de sexo?”
“Ainda liga pro namorado? [após o crime]”

“Bem feito, foi pouco, esses fdp com namorado viçando outros caras no app”

“A consciência é esquecida pelo fogo no rabo. Bem feito. Ainda traiu o namorado dele.”

“Já tem namorado, pra que arrumar fora?”

“Se ele tivesse quieto no seu relacionamento NÃO TERIA ACONTECIDOOOOOOO”

Não vamos parar de copiar os comentários não porque eles acabaram – são dezenas – Mas porque corroí o restinho de fé na humanidade que temos.  

É completamente absurdo que, em pleno 2020, tenha-se que escrever que A CULPA NUNCA É DA VÍTIMA, para começo de conversa. É o mesmo padrão que comentar que o short curto de uma menina é “pedir pra ser estuprada”.
As práticas sexuais da vítima em nada justificam o crime que foi cometido e, neste momento, fazer esse tipo de comentário demonstra uma profunda falta de empatia e mesmo de humanidade. O rapaz já passou por todo o trauma de um abuso sexual e agora tem que enfrentar uma chuva de críticas porque estava exercendo livremente sua sexualidade, coisa que é combinada e AUTORIZADA dentro de seu modelo de relacionamento.


Essa notícia, apesar da importância muito superior, em alguns portais teve um impacto semelhante a outra nessa semana, que deveria ser trivial. Minha família comprou um apartamento novo. O grande foco da questão foi: somos quatro homens gays envolvidos num relacionamento poliamoroso.

E, enquanto existem níveis de desemprego e inflação galopantes, estagnação econômica, ataques diários aos direitos humanos, uma pandemia completamente fora do controle… aparentemente o número de pessoas que dividem minha cama consegue ser tão (ou mais) ofensivo que tudo isso. Além disso, o nível de ódio destilado e os boatos mais bizarros foram feitos.

“Não é um relacionamento, só uma suruba gourmet”

“Isso não é amor, é um bando de michê que divide conta”

“O que não é padrão deve ser o escravo doméstico dos outros, para ter sido aceito.”

“Os dois brancos bombados devem ter casado com o casal de morenos pq acabou o dinheiro pra manter o estilo de vida caro e as drogas”

“O ruivo está preso num relacionamento abusivo com o marido inicial”

As frases mais chulas iremos evitar de replicar.

Após esses dois exemplos, fica o questionamento:

Por que temos uma comunidade gay tão ferozmente moralista, pronta para julgar e ofender qualquer modelo de relacionamento que fuja minimamente do que é considerado “socialmente aceitável”?


Os comportamentos em relação às relações não-monogâmicas que observamos entre gays lembram muito as opiniões de conservadores sobre as relações homossexuais. “Só putaria”, “não é amor”, “perversão”. Quando alguém sofre um ataque homofóbico: “Se não fosse espalhafatosa, isso não aconteceria”.

Por que replicam esses comportamentos que os perseguiram e puniram durante toda a vida?

“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é virar opressor”, disse Paulo Freire. Antes de pertencermos a uma “comunidade gay” somos gerados em meio diversas famílias que, em grande parte, apresentavam morais conservadoras e, ao crescer, fazemos parte de uma sociedade com diversos aspectos conservadores, sobretudo em relação a sexualidade – basta lembrar que, até recentemente, sequer tínhamos o direito de nos casar ou adotar filhos.

E, dentro deste ambiente, muitos de nós adotavam, como mecanismo de defesa, uma estratégia compensatória.

“Sou gay, mas não sou mulherzinha”
“Sou gay, mas não sou promiscuo”
“Sou gay, mas quero uma relação monogâmica e filhos”

E uma parte intrínseca dessa estratégia compensatória é desprezar e marginalizar quem não adere a ela – bichas afeminadas, gays que exercem livremente sua sexualidade e/ou adotam relações não monogâmicas, por exemplo.

“Eu sou gay, mas tudo bem, em todo o resto eu sou normal”. “Eu sou diferente deles”

De fato, não existe um problema intrínseco em ser masculino, discreto ou monogâmico. Mas claramente existe um problema em você quando você julga e ofende as pessoas pelas características e atitudes que afetam unicamente a vida delas. Tão desprezível quanto ofender o vizinho porque ele dorme com alguém do mesmo sexo é ofender o vizinho porque ele divide a cama com mais dois ou três homens.

“Mas isso gera munição para homofóbicos nos atacarem”, diriam alguns. Bem, homofóbicos vão nos atacar sob qualquer pretexto. O único jeito de fugir é ser enrustido. Mas não, adotar a veste de gay discreto de família tradicional monogâmica não vai te proteger da homofobia. Não por muito tempo.

Outra grande parcela da comunidade tem comportamento aversivo às relações não-monogâmicos simplesmente porque foram criados em uma ótica cristã, com profunda culpabilização do sexo e do livre exercício da sexualidade. E bem, o padrão de comportamento cristão nunca se caracterizou pelo “eu não devo fazer o que minha religião não permite” mas pelo “ninguém deve fazer o que minha religião não permite”.

A lógica nos faria acreditar que sofrer julgamento e ódio por toda a vida ensinaria alguma coisa sobre empatia para a comunidade gay. Talvez gerar um espirito de união ou de comunidade.
Entretanto, aparentemente preferimos continuar atacando nossas próprias minorias, baseados nos mesmos preconceitos que nos perseguiram durante toda a vida.

Se há uma solução rápida para isso, não sabemos. Mas, em um curto prazo, pode ser interessante focar em estimular as pessoas a cuidarem da própria vida. É terapêutico.


Sobre Leonardo Carvalho

Médico do Esporte por formação, atuando também em Dor Crônica e Reabilitação. Catarinense radicado em São Paulo. Adepto do amor livre. Profundamente liberal nos costumes.