Pintora e sua musa vivem paixão proibida em “Retrato de uma jovem em chamas”

Filme vencedor da Palma de Ouro na Mostra Queer de Cannes 2019, estreia nesta quinta dia 9 nos cinemas brasileiros.

Uma história de amor ambientada em 1770 em uma ilha francesa isolada tem tudo para cativar corações e mentes contemporâneas por ser o exato oposto de nossa realidade ultra conectada e efêmera. O mundo de Héloise e Marianne criado pela diretora Céline Sciamma em Retrato de uma jovem em chamas é uma experiência pujante sem efeitos especiais nem pirotecnia que inunda a tela grande de cinema. E permanece forte ao acender das luzes.

Na superfície, as questões sobre a convenção do casamento como um negócio, a marginalidade do amor e da maternidade fora dessa proposta, e um amor lésbico “marginal”. No cerne, as agruras de mulheres para enfrentar esse código cultural e tentar vencê-lo, mesmo que isso custe suas próprias vidas.

Diálogos célebres engrandecem o ótimo roteiro de Sciamma. Como a franca conversa sobre as escolhas de Marianne e de Héloise: casar-se ou não? São escolhas de fato? Este é um importante ponto de contato com o longa Adoráveis Mulheres que, um século depois, em outro continente, ainda coloca em debate a mesma pergunta.

Outra curiosa ligação entre as duas obras é a menção em ambas do risco que o fogo representava para as mulheres: seus longos e pesados vestidos chamuscavam-se com facilidade quando passavam perto de lareiras ou fornos. Por isso, as barras dos vestidos e casacos indicavam seu asseio e sua nobreza. Um discreto detalhe que denuncia a vulnerabilidade da mulher de três séculos atrás. E um signo potente.

Depois que sua irmã se suicida ao ser escolhida para se casar com um nobre italiano, a jovem Héloise (Adèle Haenel) é alçada a seu lugar como a noiva substituta. Recém-saída do convento, seu repertório de mundo é quase zero e portanto as novas realidades que a esperam não a estimulam nem a sair de seu quarto.

Adéle Haenel e Noémie Merlant em cena de Retrato de uma jovem em chamas, de Céline Sciamma

Sua mãe (Valeria Golino) a empurra à força para fora de sua zona de conforto e a coloca à disposição de um pintor que tem a missão de retratá-la para que esta imagem possa ser enviada para o pretendente italiano dar o seu aceite. É uma das etapas do acordo de casamento em vigor durante séculos. Em absoluta discordância, Héloise recusa-se a posar. O pintor é despedido e sua substituta é Marianne (Noémie Merlant), que, aparentemente, será apenas uma dama de companhia para as longas caminhadas pela praia ao redor do pequeno castelo onde moram a jovem, sua mãe e a criada Sophie (Luana Bajrami). Porém, a astuta pintora observa seu objeto artístico de um lugar tão privilegiado que consegue captar detalhes que retém na memória e passa para o papel à noite, escondida de sua ama.

Ama que vira inesperadamente musa, para depois virar arrebatadoramente amada. A exata medida dessa escalada é a essência desse amor impossível narrado brilhantemente pela diretora Céline Sciamma. O prender e soltar, reter e extravasar, pausar e tocar. Ousar.

Aos poucos, a ousadia avança e a tensão aumenta ainda mais com a aproximação entre Héloise e Marianne. E Sophie assume a discreta mediação. A câmera já está muito mais perto, com enquadramentos abundantes em primeiro plano. Neste momento, somos testemunhas de uma das mais bonitas entregas do cinema.

O casal Marianne e Héloise é esperado e querido pois a atração entre elas se dá com verdade, em um trabalho de atuação muito estudado e difícil. Adéle e Noémie, especialmente, contemplam uma a outra e calculam gestos, mas não reprimem olhares que extravasam a paixão e o desejo.

Luana Bajrami e Noémie Merlant em cena de Retrato de uma jovem em chamas, de Céline Sciamma

Desde a cena de abertura, em que o dever cego ao trabalho e à sua arte revelam a determinação de Marianne, que não mede consequências para executar a tarefa que lhe é confiada, a decupagem frame a frame é meticulosa. As transições são abruptas mas, mérito da montagem, a narrativa é ascendente e fluida, com imagens auto-explicativas e muito ricas.

O domínio da iluminação, especialmente a noturna, deixa o filme mais envolvente. Cria-se o contraponto utilizando-se os extremos: o dia de sol cinza azulado e frio, desafiador, em que as personagens agem e têm embates, e as noites com sombras e tons muito quentes em que há reflexão e conexão emocional mais forte. A primeira vez em que Marianne vê o rosto de Héloise, com o público como testemunha novamente, é perfeitamente construída em termos de tensão e informação de cor. E entre as várias cenas noturnas belíssimas, a que revela o título do longa é uma aula de direção de fotografia e direção de arte.

Naturalmente, a iluminação dos dias vai se tornar mais vívida, com cores saturadas, e o verde e o vermelho de Héloise e Marianne alcançam o exterior e as duas fortalecem seus laços. É muito relevante o signo do vermelho (paixão) e do verde (natureza bruta) nos figurinos das amantes.

O som, organicamente, e a música, poeticamente, também estão muito presentes. Apesar das muitas cenas silenciosas que ressaltam o som que suporta aquele contexto – um roçar de mãos, os passos desesperados na areia, um suspiro sufocado, a música surge com sua fala e mostra o poder que exerce sobre as duas mulheres. Ela triangula as relações, como na cena em que Marianne descobre o teclado do pequeno piano de seu quarto, toca algumas notas e abre, naquele momento, um canal de comunicação com Héloise para seus sentimentos. E, lindamente, na cena que dá título ao filme e na surpreendente cena final, forte e inequívoca.

O mito de Orfeu e Eurídice que entrelaça a narrativa desenha a poesia dos estados de ânimo e reforça mais uma vez a importância da música como fator aglutinador entre as protagonistas. Afinal, é a primeira ponte que as une. Eurídice, a ninfa e esposa de Orfeu, porque quem ele desceu ao Hades para ressuscitá-la, sintetiza a musa inspiradora e amante eterna. Quando Orfeu tocava a sua lira o “mundo parava”, em estupefação. O poder da sua música o protegeu das nove ninfas que insistiam em seduzí-lo em seu “luto profundo” por Eurídice. Como não conseguiram, decidiram esquartejá-lo e assim Orfeu re-encontrou sua amada.

Com riqueza de referências e símbolos, Retrato de uma jovem em chamas é uma imersão na memória do amor, com suas revelações, realizações e taxa de permanência, digamos. O quê permanece e como permanece. Alegremente, sabemos que é algo perene. Tristemente, entendemos que não é total. Esta é a sina de um amor castrado por convenções culturais.

Retrato de uma jovem em chamas tem estreia prevista para 09 de janeiro de 2020 nos cinemas de todo o país.

Confira abaixo o trailer:

Sobre Magah Machado

Paulistana, designer e analista de informação, entusiasta de expressões artísticas livres e autênticas na dança, cinema, música e fotografia como motores propulsores de mudanças no mindset careta e convencional