O filme francês "Petite Fille", de Sébastien Lifshitz, mostra momentos da vida de uma criança trans.

Acho que meu filho é uma criança trans: como devo agir?

Identificar indícios de inadequação ao gênero designado pelo sexo biológico é fundamental para estimular crianças a desenvolverem habilidades de enfrentamento das expectativas sociais. Para a família, isso envolve uma série de decisões.

Trabalhando com reprodução assistida, já me deparei com alguns casais que procuram atendimento com um objetivo peculiar: escolher o sexo da criança a ser gerada, através de estudo genético. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina proíbe selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças.

Mas a sequência de imposições e expectativas sobre a correlação entre sexo, gênero e comportamento não param por ai. Ainda na gestação, o “chá de revelação” com gritos de comemoração associados às cores azul e rosa, mostram como a nossa sociedade ainda pode ser ingênua ou cruel na pressão estrutural que exerce sobre o papel de gênero, antes mesmo do nascimento. O enxoval, as roupas, os brinquedos e o comportamento são metodicamente impostos pelos pais, esperando que todas as crianças reajam da mesma maneira a esse tipo de estímulo, conforme previsto pelo sexo biológico.

O vídeo abaixo parece engraçado, mas o cenário e a reação dos pais dá dimensão das expectativas precocemente impostas em torno da criança e prevê a disforia que pode ser provocada se não houver correspondência:

https://www.youtube.com/watch?v=RhhsESrtQcc

Entretanto, o comportamento e as preferências não serão determinados pela genitália ou pela genética.

Como a identidade de gênero se desenvolve e se manifesta na infância?

As crianças entre 6 e 9 meses são capazes de diferenciar, quanto ao gênero, vozes e rostos. Aos 12 meses, já associam vozes masculinas e femininas a determinados objetos tidos como típicos de cada gênero, seguindo os padrões de papel social de onde vivem. Embora mais nítido aos 2 anos, crianças de 17 a 21 meses de vida têm habilidade de se identificar como meninos ou meninas e apresentam brincadeiras relacionadas ao
gênero.

A identidade de gênero, contudo, está em um espectro, com o masculino e o feminino nas extremidades, permeados por uma diversidade de identidades não binárias. Essa identidade, seja ela trans ou cisgênero, se estabelece nas crianças em torno dos 4 anos. Nessa idade, elas iniciam um processo de validação, por meio de perguntas sobre o ser menino ou ser menina. E nesse processo, podem surgir disparidades em relação às expectativas criadas pelos pais.

Crianças transgênero se sentem tão meninas ou meninos quanto seus equivalentes cisgênero, de acordo com um grande estudo realizado nos EUA, que recrutou 317 crianças trans com entre três e doze anos, comparando com seus irmãos e irmãs, assim como 316 crianças cisgênero. Os pesquisadores estudaram os brinquedos que as crianças preferiam, quem eram seus principais companheiros de brincadeira e se suas roupas eram mais “femininas” ou “masculinas”. Eles observaram uma forte consistência entre elas. As crianças transgênero não apenas mostram preferências consistentes com sua atual identidade, mas também as mostram na mesma medida que as crianças cisgênero.

Maria Joaquina foi impedida de participar de uma competição internacional de patinação por ser transgênero

Existem indícios de que a criança é transexual?

Apesar de os dados serem escassos, devido ao preconceito e ausência de procura por serviços especializados, existem alguns critérios que podem auxiliar nessa identificação. Vale ressaltar que 85% das crianças que manifestam sofrimento pela incongruência do gênero com seu sexo biológico não permanecerão assim ao longo adolescência e da vida adulta. Portanto, um acompanhamento por equipe multidisciplinar e ao longo dos anos deve ajudar a guiar os passos dessa decisão.

Veja os critérios:

  • Expressar o desejo de pertencer a outro gênero;
  • Preferência por cross-dressing ou simulação de trajes não comuns ao seu gênero designado;
  • Forte interesse por papéis transgênero em brincadeiras e histórias;
  • Predileção por jogos e atividades tipicamente de outro gênero;
  • Forte preferência por brincar com pares do outro gênero;
  • Desgosto com a própria anatomia sexual;
  • Sofrimento significativo com essas questões a ponto de prejudicar o desempenho social.

Identificar indícios de inadequação ao sexo biológico é fundamental para estimular essas crianças a desenvolverem habilidades de enfrentamento das expectativas sociais e de adaptação, para ajudá-las a ser quem elas desejam ser. Esses critérios, desenvolvidos por associações médicas, reflem o padrão binário da nossa sociedade e não necessariamente o espectro de identidades possíveis ao ser humano. De toda forma, eles podem nos guiar no sentido de perceber crianças que podem estar desalinhadas com as expectativas em torno do papel social de gênero.

O que fazer?

Procure um especialista no assunto: psicólogos, psiquiatras e endocrinologistas podem auxiliar nesse processo, uma vez que para o indivíduo e a família, a transição envolve uma série de decisões.

Adiar a hormonização cruzada ou cirurgias de afirmação de gênero até a idade adulta é uma escolha prudente, para dar aos adolescentes tempo de reflexão suficiente, uma vez que cada um irá decidir quais modificações corporais deseja ter para expressar adequadamente a sua identidade. Nesse contexto, acolhimento da família e acompanhamento psicológico podem ser o alicerce de enfrentamento de uma sociedade preconceituosa e transfóbica.

Também existem razões para agir o mais rápido possível. Uma vez que se inicia a puberdade, o desenvolvimento de características físicas mais marcantes e relacionadas ao sexo biológico podem piorar a disforia, o sofrimento relacionado a inadequação corporal dessas pessoas.

O que é supressão da puberdade?

O tratamento hormonal que suprime a puberdade por vários anos é uma estratégia para ganhar tempo. Ao interromper a puberdade, adia-se o desenvolvimento de características sexuais secundárias – como o aprofundamento da voz, o surgimento de pelos faciais, o desenvolvimento dos seios e até mesmo a menstruação – reduzindo o impacto de ver corpo caminhar na direção oposta da que se deseja.

No Brasil, a última resolução do Conselho Federal de Medicina, só autoriza esse bloqueio em caráter experimental, em hospitais universitários ou centros de referência. A partir dos 16 anos, já é possível então iniciar a hormonização cruzada ou suspender o bloqueio.

Mais detalhes sobre essa resolução e regras para hormonização e cirurgias de afirmação de gênero você pode ver nessa outra publicação.

Sobre Tiago Oliveira

Retirante nordestino, com formação médica em ginecologia pela USP. Gay, encontrou sentido pra vida na luta por direitos humanos e na promoção de justiça social. Gosta de arte, de viagens, de ciência, mas principalmente de pessoas. Toca violão, canta no chuveiro, escreve poemas e tatua o corpo.