Uma história de muito orgulho: os 40 anos do movimento LGBT brasileiro

Por conta do dia internacional do orgulho LGBT, em 28 de junho, muitos portais relembram os fatídicos dias da Revolta de Stonewall (EUA) em 1969. Os LGBT que lutaram contra a repressão policial no bar Stonewall Inn entraram pra nossa história. No entanto, poucos sabem da história do movimento LGBT brasileiro, que em 2018 completa 40 anos: como foi fundado, suas conquistas e desafios iniciais e como chegou até aqui. O objetivo desse artigo é elucidar um pouco dessas questões e trazer ao final algumas reflexões sobre as lutas que se fazem nos dias de hoje.

Em meio à ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), a repressão contra as pessoas LGBT se dava sob diferentes contornos. O Estado ditatorial cassou 15 diplomatas do Itamaraty pela orientação sexual, sendo 7 deles explicitamente pela “prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa”. Em São Paulo, o aparato repressivo policial prendeu 460 travestis entre 1976 e 1977. O delegado José Wilson Richetti se tornou conhecido pelas “Operação Limpeza” e “Operação Sapatão”, realizadas em 1980, cujo objetivo era perseguir travestis, mulheres lésbicas e homens gays nas áreas centrais da cidade. As rondas policiais noturnas eram largamente conhecidas pela imprensa, sendo noticiadas tanto pela Folha de São Paulo quanto pelo jornal gay alternativo Lampião da Esquina. Um protesto no dia 13 de junho de 1980 marcado pelos movimentos estudantil, negro e homossexual aconteceu em frente ao Theatro Municipal. A destituição de Richetti do cargo de delegado e o fim das perseguições eram as reivindicações do ato.

Importa destacar o surgimento do movimento homossexual brasileiro, assim chamado à época. O grupo Somos – Grupo de Afirmação Homossexual foi o primeiro no país formado por gays e lésbicas e assim se apresentou pela primeira vez em dezembro de 1978 num debate na USP. Do Somos surgiram dois grupos provenientes de um “racha”: o Grupo de Ação Lésbico-Feminista (GALF), que circulava o boletim Chanacomchana, e o Outra Coisa, o primeiro grupo a demandar e divulgar informações sobre a epidemia de HIV/AIDS no país no início da década de 1980. No ato do 1º de maio de 1980, em meio à greve do ABC que durou 41 dias, os movimentos se organizaram para reivindicar o fim da intervenção federal nos sindicatos do ABC e do preconceito aos trabalhadores e às trabalhadoras LGBT. Diversos pesquisadores produziram sobre a trajetória do Somos, o GALF e demais movimentos, dentre eles os próprios fundadores como João Silvério Trevisan, Marisa Fernandes e James N. Green.

A retirada da homossexualidade da lista de doenças do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS) em 1985 pode ser considerada como mais um marco na história do movimento. O movimento tentou incluir a discriminação por orientação sexual no texto da Constituição em 1988, porém foi vencido. Ainda assim, ela se deu nas Constituições estaduais de Sergipe e Mato Grosso e em 27 leis orgânicas municipais, como nas do Rio, São Paulo e Salvador. Outra grande vitória política encampada pelo movimento LGBT foi a resposta do governo federal dada à epidemia de HIV/AIDS na década de 1990, cujo tratamento é ofertado de forma gratuita no SUS e é referência mundial ainda hoje. Antes disso, apenas indivíduos e instituições faziam o papel da prevenção, conscientização e de luta contra a AIDS, além de confrontar o governo pela ausência de campanhas e tratamento.

A partir da organização dos grupos de mulheres lésbicas, bissexuais e pessoas transgêneros foi possível a articulação para participar e pautar políticas públicas voltadas à esses segmentos nas Conferências Nacionais de Política para Mulheres e a inclusão da violência contra mulheres LBT na Lei Maria da Penha. A fundação da ABGLT em 1995, da ANTRA em 2001 e da ABL em 2004 foi fundamental para as lutas políticas em nosso país. Nota-se que estas entidades centraram força em pautar políticas públicas LGBT em diálogo constante com os governos a partir de 2003. Fruto disso, nasceram o programa Brasil Sem Homofobia – primeira política do Estado brasileiro voltada para a população LGBT – em 2004 e a I Conferência Nacional LGBT em 2008, com abertura feita pelo ex-presidente Lula, algo inédito no mundo. Sob a presidência de Keila Simpson, a ANTRA tem feito desde o ano passado o “Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais” para denunciar e pautar medidas urgentes de combate à violência transfóbica. Essa bandeira tem sido fortalecida também com a eleição de Symmy Larrat à presidência da ABGLT em 2017, a primeira pessoa trans a ocupar o cargo na maior organização LGBT da América Latina. Muitas das políticas públicas seriam impensáveis sem estes movimentos. Todos os dossiês existentes sobre lesbocídio, homofobia, bifobia e transfobia no Brasil foram realizados por movimentos e acadêmicos – à exceção de 2011 e 2012, quando foram publicados relatórios oficiais do Estado.

É notável que o Congresso Nacional nunca tenha aprovado um projeto de lei pró-LGBT, embora eles existam desde 1995. O reacionarismo das bancadas se ampliou e barrou diversos projetos, do PL do casamento civil ao da criminalização da homofobia. E aqui reside o perigo: a maioria dos direitos LGBT existe via Poder Judiciário. Não legislar sobre os nossos direitos torna a anulação destes avanços algo possível, caso o conservadorismo permeie a magistratura. O reconhecimento do processo de redesignação sexual no SUS, do nome social e da identidade de gênero de estudantes efetuada pelo governo federal entre 2013 e 2016 tem sido o amparo legal para que pessoas trans reivindiquem seus direitos. A reação conservadora dá-se por meio de muitos projetos, dentre os quais se destacam o da “Escola Sem Partido” que abomina a discussão sobre gênero e diversidade sexual nas escolas e o da “cura gay”, que visa apagar as sexualidades dissidentes da heteronormatividade. Vale lembrar que sob o governo Temer, os recursos para programas de combate à homofobia foram zerados em 2017.

O orgulho LGBT é feito a partir de muitas vozes, mãos e lutas há 40 anos e todo o cenário de liberdade de expressão e de organização atual se deve àqueles que vieram antes de nós. Há muito suor e sangue nessa trajetória a qual devemos respeitar e seguir com a força das pessoas que dão a cara à tapa pelo direito de existir. Ter orgulho de ser LGBT é celebrar essa diversidade sexual e de gênero existente sob as cores do arco-íris e também fincar a memória de lutas do movimento de 1978 até hoje. Há um longo trajeto para que o Estado promova a diversidade e previna a violência desde a educação básica. Nesse ano de eleição é crucial que nós tenhamos atenção às candidatas e aos candidatos que defendam os nossos direitos e a democracia – única forma de exercício do poder com a qual o movimento pode dialogar, demandar e lutar pela garantia da cidadania e dos direitos da população LGBT.

Sobre Rodolfo Tavares

Historiador apaixonado em estudos em sexualidade e cinema. Criador do @lgbthistoria no Instagram, onde posta sobre a história e cultura da população LGBT no Brasil. Amante do cinema nacional e tem referências em Kleber Mendonça Filho, Anna Muylaert e Lúcia Murat.