Compra-me um revólver | Distopia apresenta sociedade que mata mulheres e exalta a violência

Em um México refém de violentos cartéis de drogas vivem a garota Huck (Matilde Hernandez Guinea) e seu pai Rogelio (Rogelio Sosa). O trailer estacionado no campo de beisebol administrado por milícias e facções de traficantes é sua casa. Como zelador da arena, Rogelio atende indistintamente a qualquer exigência dos criminosos que o submetem a abusos constantes e humilhações diversas. O importante é jogar o jogo. E ter sorte.

E isso Rogelio acredita que tem de sobra. Por isso ainda está vivo, ensina à sua pequena Huck. Com cabelos curtos e usando uma máscara, um disfarce de gênero pois as mulheres são presas favoritas dessa ultraviolência, a menina é uma vítima resignada que usa a inocência a seu favor. Alheia à condição limite em que sobrevive, testa perigosamente suas fronteiras, colocando seu pai em absoluto desespero.

Esta tensão que Huck provoca é o que conecta imediatamente o espectador à trama distópica de Julio Hernández Cordón. Com imagens chocantes e muita aflição, o roteiro de autoria do próprio Cordón vai se impondo aos poucos com valores mais duradouros. Surgem metáforas menos óbvias.

Uma das mais belas metáforas que tecem esta alegoria sobre a aridez da violência é a de el Capo (Sostenes Rojas), com sua sexualidade fluida. O todo-poderoso chefão do aterrorizante grupo que controla a região tem um destino simbólico que engrandece o filme.

Originalmente concebido como uma adaptação futurista de As aventuras de Huckleberry Finn, este mais recente projeto do cineasta mexicano pontua um portfolio de obras exploratórias de parcerias inusitadas e sedentas por altos riscos, como em Las Marimbas del Infierno (2010) e seu debut Gasolina (2008). Habituado a louváveis reconhecimentos em festivais latino-americanos, Hernández Cordón deixa mais ousada sua investigação sobre o processo criador da engenhosidade humana sob condições adversas.

A fotografia de Nicolás Wong abusa de tons terrosos e usa a luz natural como escape para uma realidade inatingível, onde existe água em abundância, amizade, brincadeiras de criança e liberdade. Fora deste espectro, é tudo escuridão e incertezas. Nada mais verdadeiro para construir esta fantasia.

Uma ambientação crua e inóspita, com texturas quase palpáveis, envolvem com certo magnetismo o monótono deserto. Chegam ao ápice com a poética cena em que Tom toca seu trompete e espalha uma fumaça vívida e colorida pelo ar, resultado do arrojado trabalho de arte de Ivonne Fuentes.

O elenco mirim encabeçado por Matilde, filha de Cordón, consegue dar conta do recado, flertando com algum naturalismo. Contracenam com alguma graça com os adultos, que, por sua vez, preenchem seus personagens com o que se espera deles, tão somente. Uma razão para isso é o método de seleção do diretor de casting, Eduardo Giralt Brun, conhecido por escolher candidatos não-atores para dar mais verdade às produções em que trabalha. Para temáticas como esta, Brun foi em busca de garotos que servem no tráfico, conhecidos como malandros. Um desses não-atores, mesmo sem bom desempenho cênico, foi escalado para o elenco do filme de Cordón e mostrou o manejo realista de armas à frente das câmeras. Outro não ator é Rogelio Sosa, um músico mexicano dedicado a composições de eletroacústica, que fez sua estreia nas grandes telas como o trompetista pai de Huck. Rogelio atinge alguma nuance como o pai afetuoso e viciado, mas a falta de um aprofundamento do roteiro no contexto de Compra-me um revólver lhe atinge em cheio.

Mesmo assim, imerso em seu delírio especulativo, o longa de Cordón não compromete por deixar as explicações de lado e deixar evidentes suas referências `a Mad Max. Como uma inventividade embrionária de um possível universo de Huck, Rogelio, Ángel e crianças vítimas de violência, aponta para inúmeras pedras no caminho civilizatório contemporâneo. O acesso facilitado às armas, as questões de gênero suprimidas desde a tenra idade, o jogo do poder que o mercado das drogas coata, a opressão do feminino, feminicídio, a colonização cultural exercida pelos Estados Unidos, o desprezo por políticas ambientais sérias, para mencionar algumas. Compra-me um revólver, para além de suas, talvez, medianas qualidades cinematográficas, é uma ótima consideração acerca da dura trajetória humana frente ao hostil e prepotente estado de coisas em que vivemos hoje.

Compra-me um revólver tem previsão de estreia em 30 de maio nos cinemas de todo o país.

Confira o trailer:

Sobre Magah Machado

Paulistana, designer e analista de informação, entusiasta de expressões artísticas livres e autênticas na dança, cinema, música e fotografia como motores propulsores de mudanças no mindset careta e convencional