“Mulheres de Shakespeare” traz ao palco discussões atuais sobre o papel da mulher na sociedade

Escrito pela novelista e vencedora do Emmy Internacional Thelma Guedes, a peça exalta personagens femininas na obra do Bardo

No ar com a novela Órfãos da Terra, na TV Globo, a premiada autora Thelma Guedes reestreia a peça Mulheres de Shakespeare, com direção do encenador inglês Luke Dixon, no Teatro Itália, em São Paulo. A peça é estrelada pelas atrizes Ana Guasque e Suzy Rêgo. O espetáculo fica em cartaz de 06 de setembro a 27 de outubro, com apresentações às sextas e aos sábados, às 21h, e aos domingos, às 18h.

Na trama, duas atrizes se encontram em um teatro para uma reunião de elenco, quando são surpreendidas por um temporal. Enquanto esperam pelo diretor e o restante da equipe, deparam-se com as mulheres de Shakespeare, memórias femininas que perpassam os séculos. E esse encontro faz com que se voltem para si mesmas, revendo e questionando os próprios conflitos.

A peça reúne as personagens femininas de Shakespeare em um mosaico multifacetado e leve, alternando momentos dramáticos com humor, com textos que transitam entre a transgressão, a submissão, a ambição e o amor. Mulheres decididas e autoconfiantes, mulheres submissas, castas, doces, apaixonadas, ousadas, enigmáticas, loucas, santas, trágicas, cômicas, únicas compõem esse painel colorido e cuidadosamente selecionado.

A montagem é baseada em uma extensa pesquisa realizada pela atriz e bailarina Ana Guasque sobre as figuras femininas na obra de William Shakespeare (1564-1616). A encenação surgiu da necessidade de dar voz a essas personagens criadas há cinco séculos, uma época em que as mulheres não possuíam espaço na sociedade e sequer podiam subir ao palco – elas eram interpretadas por homens mais jovens que possuíam a voz mais aguda.

O Empoderadxs entrevistou a atriz Ana Guaspe que explicou como uma obra secular ainda se faz tão relevante nos dias de hoje. E o que a mulher da atualidade pode aprender com as mulheres de Shakespeare.

1.     Ana, você se envolveu fortemente na pesquisa sobre as figuras femininas retratadas por Shakespeare, que resultou na peça. Como foi essa busca? 

Foi um insight que tive no final do ano de 2015, quando estava lançando meu livro “Victória, uma saga italiana no interior do Rio Grande”, lá no RS. Faz alguns anos que o feminino está na minha pauta, temos grandes mulheres na história, que fizeram a diferença, deixaram um legado, e a grande maioria delas estão esquecidas, estão submersas, abafadas, caladas por uma sociedade historicamente direcionada para o masculino. Sem nenhum preconceito ou bandeira, não tenho como intuito negar ou subjugar o masculino, amamos os homens e tudo o que eles representam, mas também não queremos as mulheres caladas e subjugadas, queremos suas histórias reveladas e seu valor reconhecido.

No meio deste turbilhão de reflexão, pensei que gostaria muito de interpretar alguma personagem de Shakespeare, e comecei a escolher uma peça, foi quando pensei: a quantas mulheres maravilhosas Shakespeare deu voz! E porque os personagens masculinos são mais conhecidos e aclamados? E então pensei, como seria bom e maravilhoso dar voz a essas mulheres criadas por Shakespeare! Poderíamos reuni-las em um único espetáculo.

Sempre carrego alguns livros quando viajo, especialmente viagens longas como esta que durou em torno de 25 dias. E curiosamente, um dos livros que peguei era uma coletânea de monólogos de personagens femininas de Shakespeare, em inglês! No meio desta reflexão, olhei em cima da cama e lá estava o livro, que peguei ao acaso da minha estante e levei junto na viagem. E ali, naquele momento tive certeza que deveria fazer este projeto. No mesmo instante iniciei a pesquisa, que se estendeu até o ano de 2017, momento em que a Thelma Guedes carinhosamente começou a escrever o texto, com base na pesquisa que enviei para ela e com base em suas vivências pessoais. E o resultado é este espetáculo lindo, com este texto potente e transformador.

2. Você vê alguma semelhança de tais mulheres de séculos passados com a mulher do século XXI?

Acho que atualmente conquistamos um espaço muito importante, mas ainda há muito a ser feito. Curiosamente, as falas das personagens femininas de Shakespeare, no texto original, por vezes são mais libertárias do que situações da nossa atualidade. E muitas traduções brasileiras revelam um conservadorismo que não existia no texto original de Shakespeare, isso é assustador. Shakespeare criou personagens femininas fortes, intensas, revolucionárias, em um tempo em as mulheres não possuíam espaço nenhum na sociedade, sequer podiam interpretar essas personagens, eram homens que interpretavam. Hoje, ao menos, podemos representa-las sem medo de morrer assassinada, já é um grande avanço! (risos). A obra do Bardo repercute com muita força ainda, e têm cinco séculos de existência. É um autor que perpassa o tempo. É muito curioso como nós, mulheres do futuro (em relação a Shakespeare), podemos nos nutrir de liberdade e força, inspiradas por essas personagens incríveis de cinco séculos atrás, que por vezes são mais modernas que nós hoje!

3. Você sentiu a necessidade de dar voz à tais mulheres, por quê? 

O feminino está na minha pauta há alguns anos. Sou uma mulher que, como muitas, eu diria até que – como a maioria de nós, passou por situações de subjugação, violência psicológica e abusos dos mais diversos – é muito difícil ser mulher neste mundo, e mais difícil ainda ser mulher aqui no nosso país! Estas experiências desagradáveis vivenciadas me conduziram pra uma trajetória de auto conhecimento muitíssimo importante e rica, e junto veio a necessidade de fortalecer a Ana Mulher. Este processo iniciou com meu espetáculo solo de dança “Sobre Ancas”, dirigido pela coreógrafa Cláudia Palma, onde ficamos seis meses pesquisando o feminino, tanto coreograficamente, como fazendo um trabalho de campo com mulheres, das mais diversas classes sociais. E nos deparamos com mulheres muito machucadas, abusadas, maltratadas, com a auto-estima totalmente fragmentada. E isto independe de classe social. Foi um choque. e ao mesmo tempo um entendimento muito profundo de mim mesma e da sociedade. Foi uma experiência muito engrandecedora. Dali em diante, o feminino entrou em pauta para mim. Escrevi meu livro Victória, que conta a história de uma mulher que criou uma cidade no interior do Rio Grande do Sul, numa terra de homens, e curiosamente e por coincidência, essa mulher é minha bisavó. Passei dois anos inteiros pesquisando e escrevendo a história dela, enquanto me nutria da força feminina ancestral. Minhas transformações pessoais foram profundas. 

Mulheres de Shakespeare faz parte deste processo de integração e fortalecimento do feminino, de ser mulher, de resgatar a si mesma e trazer consigo outras mulheres, para juntas, de mãos dadas, colocarmos nossa voz no mundo.

Graças a Deus, tive a parceria da Thelminha Guedes, que generosa e brilhantemente nos presenteou com este lindo lindo. E a direção brilhante do Luke Dixon, o carinho da Suzy Rêgo, parceira incrível, atriz talentosíssima, é maravilhoso contracenar com ela. E toda a equipe de Mulheres de Shakespeare, cada um com seu talento, contribuiu e contribui para a existência deste espetáculo. É maravilhoso ver aquela primeira ideia se transformar em espetáculo.

4. Na peça, a mulher está no foco, mas nem sempre foi assim.  Como você vê a mulher na atualidade?

Acho que conquistamos um espaço muito importante, mas ainda precisamos conquistar mais, precisamos de uma sociedade que nos respeite, que não nos mate, que não nos estupre, que não abuse sexualmente de nossas meninas (e meninos!), precisamos ajudar a construir essa sociedade, ensinando nossos filhos a respeitarem as mulheres e respeitarem todas as pessoas em sua diversidade, independentemente de gênero, cor, ou direcionamento sexual. Todos merecem ser respeitados. E não podemos reproduzir ou incentivar comportamentos opressores. Precisamos trabalhar para construir uma sociedade mais justa, mais acolhedora, mais amorosa, mais equilibrada. Vejo a nós mulheres com uma grande responsabilidade nas mãos, a responsabilidade de trabalhar para a existência de uma sociedade que nos respeite. Prefiro usar a palavra trabalho do que usar a palavra luta. Ainda temos muito a conquistar. E como mulheres, temos muito a ensinar. Lembrem-se sempre que todos, todos nós viemos do útero de uma mulher.

5. Hoje em dia, a mulher pode estar aonde ela quiser! Qual a maior batalha que uma mulher enfrenta para poder estar nos palcos? 

Essa é uma discussão que vai além do ser mulher, estar nos palcos é uma batalha diária no país em que vivemos, (infelizmente). É uma discussão bastante profunda, que toca nos alicerces da importância que a cultura tem na nossa sociedade. Não é nada fácil colocar um espetáculo em pé e manter-lo vivo. Há vezes em que trabalhamos em condições bastante precárias para manter e sustentar um espetáculo. Falando especificamente em nós mulheres, lidamos com padrões de mercado, lidamos com situações que são alheias às nossas escolhas pessoais. Por isso, gosto tanto de produzir meus projetos, é libertador. 

SERVIÇO
Mulheres de Shakespeare, de Thelma Guedes, com Ana Guasque e Suzy Rêgo
Teatro Itália –Av Ipiranga 344 – República – São Paulo
Temporada: de 6 de setembro a 27 de outubro
Às sextas e aos sábados, às 21h; e aos domingos, às 18h
Ingressos: R$ 60
Informações: (11) 3255-1979 / (11) 3120-6945
Capacidade: 290 lugares
Classificação: 12 anos
Duração: 80 minutos

Sobre Emílio Faustino

Formado em jornalismo, atua na área há mais de 15 anos. Amante da sétima arte, no YouTube apresenta o canal EmpoderadXs onde entrevista atores, diretores e ativistas. Atuou em empresas como Rede Globo e UOL, sempre com enfoque em cultura e ativismo. É diretor executivo e fundador do site EmpoderadXs, onde promove a união de minorias sociais e realiza seu sonho de dar voz para quem precisa.