Parasita mostra luta de classes sangrenta

Parasita | Desigualdade social é ponto de partida de premiado filme coreano

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, filme que estreia nesta quinta (7) retrata a luta entre de classes em uma trama repleta de reviravoltas surpreendentes.

A desigualdade social exposta que se aprofunda pelos quatro cantos do planeta tem sido repetidamente tema de histórias marcantes nas produções cinematográficas. Mais importante, como as pessoas estão lidando com isso ou, ainda, as proporções que tal desequilíbrio pode alcançar tem inspirado tramas com teor artístico e verossimilhança inquestionáveis.

A distopia e o futurismo não são novidades no cinema de Bong Joon-Ho. Okja (2017), Expresso do Amanhã (2013) e Hospedeiro (2006) são bons exemplos das obras do diretor, sempre com nuances de impacto. Em Parasita (2019), Joon-Ho sai do imaginário opressor e se volta para a realidade opressora. E com lentes macro, constrói uma espiral descendente reveladora do que é viver em desespero. Imageticamente, poeticamente. Literalmente para quem quiser ver.

Neste novo longa do diretor coreano, um jovem tem a sorte de se tornar o tutor de inglês da filha adolescente de um casal milionário. Recomendado por seu amigo universitário, o jovem vai usufruir de uma transferência plena de reputação. A partir dela vai construir as trilhas para os momentos oportunos, um a um, em que seus familiares vão se inserir igualmente para servir aos abastados patrões do primogênito.

A sopa de letrinhas é obrigatória, pois as atuações são brilhantes: o jovem Ki-woo (Choi Woo-sik) tem a malandragem lapidada no sangue e sua cara de pau como o tutor de inglês da adolescente Da-hye (Jung Ji-so) é inigualável. Ki-woo é quase onipresente no longa, orquestrando todo o forte elenco em favor do roteiro, com expressividade incrível. Mesmo o ator veterano Song Kang-ho, frequentemente escalado pelo diretor em seus trabalhos, articula-se muito bem com seu núcleo familiar sem se preocupar com protagonismos. Como o pai desenvolto de Ki-woo, posa de mastermind, porém, quem articula e direciona ação e reação é seu filho. A irmã, Ki-jung, a ótima Park So-dam, com seu talento para artes e fraudes no Photoshop, representa a sofisticação do perjuro, doce e acolhedora. A mãe, medalhista olímpica, é a força física bruta e disciplinante que move o grupo para frente. A atriz Jang Hye-jin consegue esse caráter estimulante em sua personagem e novamente, como já fez em Hospedeiro, Joon-ho, traz a cultura competitiva olímpica das Coreias para suas histórias.

A ardilosa família Kim vai envolver uma família de milionários que são sua projeção social, só que com sinal invertido. Ki-woo vai entrar no lar ricaço pelo elo mais fraco: a mãe, “uma pessoa…simples”, interpretada por Jo Yeo-jeong. Confortável em sua bolha, Chung-sook é uma mãe aflita e medrosa que consome remédios, supostamente, tarja preta. Sua ignorância do mundo é compartilhada pelos outros membros da família. Seu marido, interpretado por Lee Sun-kyun com boas modulações, é um empresário de tecnologia, com um pouco mais de vivência com a diversidade social dentro de sua empresa. Porém, ele rejeita qualquer aproximação além do estritamente subserviente. A filha adolescente, confinada no próprio quarto, e seu irmão menor, são educados por uma governanta, Gwang-moon.

Jeong-eun Lee interpreta a típica governanta. Esta é o último estrato do filme antes de uma cascata de spoilers.

Choi Woo-sik é o filho falsário de Parasita.

Parasita, extrapolando seu contexto científico, tem uma conotação pejorativa que alia a exploração do aproveitador à preguiça. Com sua mente inquieta, Ki-woo é tudo, menos preguiçoso. Seu núcleo familiar tampouco. Valendo-se de suas habilidades de planejamento e execução, não deixam de estudar e ensaiar juntos (recurso de metalinguagem eficiente do roteiro de Joon-ho e Won Han-jin) o próximo lance para alcançarem seu objetivo. Trabalham com foco nas qualidades um do outro em prol do coletivo.

Em oposição, a família Park é um catadão de indivíduos isolados que são desconhecidos uns aos outros, a menos pelos erros que cometem e falhas que possuem. Não se misturam, só interagem por meio de terceirizados que sabem muito mais sobre a vida do que eles: o tutor de inglês, a tutora de artes, o motorista, a governanta. Sem maniqueísmos, os dois grupos vão ao limite de sua tolerância.

O mar azul de prosperidade em que Chung navega com o núcleo rico vai enfrentar chuvas fortes e inundação, mas sua âncora vai ser lançada às águas muito profundas, interrompendo esse ciclo de bonança. As consequências serão muito graves e o diretor traduz este percurso descendente com tantos signos que chega a ser instigante buscá-los a cada cena. Não faltam as referências tragicômicas à Coréia do Norte e ao nazismo alemão.

A riqueza de correlações da linguagem de Joon-ho acontece como fruto de um trabalho minucioso. As cores saturadas e sóbrias da mansão inundam a tela com uma frieza desagradável, um vazio existencial vulnerável sob uma iluminação natural. Os golpistas, oprimidos por seus pertences coloridos e puídos, entulhados no porão asfixiante onde moram, olham para paredes com azulejos brancos e luz artificial.

E como um bom filme coreano, não falta aquela dose de raivoso ímpeto vingativo, entre as muitas reviravoltas da trama, recurso também comum aos roteiros de outros diretores do país, como Kim Ki-duk em Pietá (2012) e Park Chan-wook em A Criada (2016).

Desde quando a invenção do cinema não era mais do que um passatempo de vaudeville, o sadismo era um fetiche. Em Parasita, o sadismo como expiação do próprio medo de chegar ao fundo do poço é brutal: é o medo, principalmente, de nunca mais se conseguir sair do poço. Sem a misericórdia da morte, sem o alívio da loucura. Em franca lucidez. Isso é o que mais assusta na mensagem de Joon-Ho.

Parasita tem previsão de estreia dia 07 de novembro nos cinemas de todo o país. Confira o trailer abaixo:

Sobre Magah Machado

Paulistana, designer e analista de informação, entusiasta de expressões artísticas livres e autênticas na dança, cinema, música e fotografia como motores propulsores de mudanças no mindset careta e convencional