Protagonismo feminino ganha força e nuances em remake de “Adoráveis Mulheres”

Nova obra de Greta Gerwig traz amadurecimento de diretora com inovadora adaptação de clássico americano. O filme estreia nesta quinta (9) nos cinemas de todo o país.

Talvez soe anacrônico uma jovem em meados do século XIX ter uma consciência clara de que seu propósito de vida não deva estar subjugado ao seu gênero. Uma mulher em 1800 podia realizar-se fora da instituição do casamento? Para ser uma escritora, por exemplo, e viver de seu ofício, era possível manter-se solteira e independente?

Esta é uma grande questão por trás de Adoráveis Mulheres (2019), em arrojada adaptação do romance de 1868 de Louisa May Alcott feito pela diretora americana Greta Gerwig. Arrojada, principalmente, por que Gerwig decidiu fazer uma intervenção que diz muito sobre a posição que a mulher conquistou nos dois últimos séculos. Alterando o final da protagonista Jo (Saoirse Ronan), lhe conferiu a autonomia que a personagem merecia e não pôde ter na época devido, justamente, ao papel que lhe cabia enquanto mulher: “casar ou morrer”, nas duras palavras do editor John Broke.

Saoirse Ronan é Jo em Adoráveis Mulheres, de Greta Gerwig

Ao lado de suas três irmãs, sua mãe e sua tia, Jo vai espelhar esta luta interna com algumas certezas e muitas dúvidas. O pai capelão em serviço militar na Guerra Civil, alheio a estas ponderações de sua família, deixa o espaço livre para as decisões femininas que tensionam e relaxam o fio da história das meninas March.

Além da inventividade do roteiro, em que mescla duas linhas do tempo com tamanha afinidade que a fluidez narrativa ressalta as personagens, Greta fechou um elenco tão orgânico que a veracidade dos acontecimentos parece inquestionável. É muito sincero o amor entre Jo e seu vizinho Laurie (Timothée Chalamet), que se esforça também para amar de várias maneiras Amy (Florence Pugh), a irmã caçula, complementar oposta à Jo. Laurie se entrega, na verdade, às duas faces da mesma moeda: o amor romântico e o real. Com doçura e crueldade alternadas, o trio conduz os pontos neurais da trama com excelentes atuações, um gestual significativo, modulações de voz dinâmicas. O destaque é o timbre e corpo do trabalho de voz de Florence, sedutor e quente.

Ao redor de Jo, Amy e Laurie estão as duas irmãs Meg (Emma Watson) e Beth (Elza Scanlen) comtemporizando com a mãe Marmee (Laura Dern) e a tia March (Meryl Streep). Dadas as proporções de cada personagem, cada uma brilha em sua vez sem deixar de apoiar amplamente as cenas coletivas. Aliás, o trabalho coletivo é uma marca desta produção e por isso cada ator tem a força individual estimulada pelo grupo. Dern e Streep, naturalmente, por seu repertório, criaram personagens perfeitos em interação e expressividade.

Ocupando a lacuna que seu pai “Father March” (Bob Odenrick) deixou enquanto lutava na guerra, as irmãs experimentam as dores e delícias da adolescência e da jovem vida adulta sob a égide da família acolhedora, moralmente beneficiada por serem brancas e bonitas em uma Nova Inglaterra provendo pouco aos nativos e aos imigrantes.

Essas mulheres, vivendo experiências relevantes de transformação, mostram o desenvolvimento sócio-emocional nos Estados Unidos sangrando em plena Guerra Civil. Não se deixam abater. Buscam o que for preciso para concretizarem o que acreditam ser seu propósito, cada uma sintetizando brevemente as faces do feminino da época.

Em 1868, Louisa May Alcott já era popular com sua obra literária ao escrever a história em que se baseia o filme de Gerwig. Ao aceitar a encomenda da editora Roberts Brothers para escrever uma história popular sobre garotas, Louisa cravou a pedra fundamental do universo de Little Women (Mulherzinhas), que se construiria por outros lançamentos subsequentes.

De uma família adepta do transcendentalismo americano, filosofia desenvolvida por seu amigo Ralph Waldo Emerson, a escritora era abolicionista e sufragista, mantendo-se solteira por toda sua vida. Sua Josephine, a Jo, carrega seu DNA em muitas similaridades que são mostradas no romance. Suas irmãs também foram inspirações para as meninas da família March, retratando a jovem mulher branca estadunidense e de classe média típica da segunda metade do século XIX.

Baseada em Massachusetts, a família Alcott e a família March, por consequência, são o expoente do pensamento da chamada Era Dourada americana (Gilded Age), imersa em profunda desigualdade social e econômica. Por estas credenciais, tornou-se um clássico entre os primeiros romances realistas da literatura juvenil americana.

Depois de adaptações para o cinema em 1933, 1949 e 1994, e muitas outras para a TV, a obra de Louisa May Alcott alcança um novo patamar de criatividade e beleza pelas mãos de Gerwig e sua equipe.

Saoirse Ronan e Timothée Chalamet em Adoráveis Mulheres

Yorick Le Saux desenha uma cinematografia eficiente para dar conta do sofisticado roteiro. Os planos são variados com muitas cores vivas na adolescência das irmãs March e são invadidos por sombras nos anos mais tardios, com predomínio de azuis.

A trilha sonora do premiado Alexandre Desplat pontua bem a passagem de tempo e as mudanças de ânimo das personagens, indo de leves canções de baile a inserções mais contundentes.

Assim como a obra de 1994, esta nova versão tem mulheres em boa parte do elenco e produção, mas com um grande diferencial: um dos principais talentos do cinema contemporâneo a ser reconhecido pela premiação mais popular do planeta. Greta Gerwig relata em uma entrevista ao Hollywood Reporter que todo o trabalho de Steven Spielberg em Lincoln foi compartilhado com ela e com sua generosidade ela planejou e concretizou um projeto que sempre lhe foi muito caro. Com essa mesma paixão que dedicou ao memorável Lady Bird, indicado ao Oscar por melhor filme e direção no ano passado, Greta está na pré-lista novamente de melhor filme ao Oscar de 2020. Um feito inédito na história da competição.

Greta Gerwig sobe mais alguns degraus em sua consistente carreira e ajuda a viabilizar maior espaço e respeito ao trabalho de cineastas e profissionais mulheres da indústria cinematográfica.

Adoráveis Mulheres estreia nesta quinta (9) nos cinemas de todo o país.

Confira o trailer abaixo:

Sobre Magah Machado

Paulistana, designer e analista de informação, entusiasta de expressões artísticas livres e autênticas na dança, cinema, música e fotografia como motores propulsores de mudanças no mindset careta e convencional