As invisíveis | Dramédia explora a sororidade e resiliência de moradoras de rua em Paris

Estreia nesta quinta (20) comédia de tom crítico que expõe as fraturas sociais ignoradas pela sociedade

Um pequeno grupo de mulheres em situação de rua caminham horas para se comprimirem bem cedinho na frente dos portões do único centro de acolhimento do bairro. Um banho e uma refeição quente podem trazer algum alento no inverno rigoroso. São recebidas sem cerimônia, passam por uma burocracia de revistas e questionários de rotina para desabarem em mesas e cadeiras. Finalmente podem relaxar, conversar, dormir. Até a noite chegar. Ou até a próxima mudança de orientação da (falta de) política pública para os desassistidos da cidade: mais uma vez, um centro de acolhimento será fechado por ter um custo sem retorno ao Estado.

Esta história já batida poderia muito bem acontecer em qualquer país debaixo da linha do Equador, como no Brasil, por exemplo. No drama As invisíveis, é a França que faz uma pequena auto-reflexão sobre como tem administrado este problema secular. E para encarar a discussão de frente, dá o protagonismo às mulheres, minoria nas populações de rua, mas carregando riscos duas vezes maiores: ser mulher e ser 60+.

O diretor Louis-Julien Petit juntou-se a Claire Lajeunie para adaptar o livro da escritora que faz uma imersão no cotidiano de mulheres morando nas ruas da cidade cartão-postal mais famosa do mundo. Claire conta em “Sur la route des invisibles: femmes dans la rue” (2015) (Sobre o caminho das invisíveis: mulheres na rua, em tradução livre) os desafios imensos que, diariamente, essas e muitas mulheres enfrentam apenas para seguirem vivendo como podem. Uma sobrevida com fome, solidão, medo, abusos de toda natureza e muito desprezo. Tanto desprezo que as deixa invisíveis a nossos olhos.

Para emprestar um pouco da luz de Paris às personagens sem cegar e assustar o público com a verdade bruta, Louis-Julien escalou mulheres que realmente tiveram experiências morando nas ruas e contou com atrizes veteranas para apoio ao dirigí-las. Audrey Lamy, famosa na TV e cinema do país, faz o necessário como a assistente social Audrey Scapio que lidera as profissionais empenhadas em fazer de tudo para dirimir um pouco o sofrimento daquelas mulheres. Noèmie Lvosky como Hélène, e Déborah Lukumuena como a esquentadinha Angélique se destacam com personagens um pouco mais aprofundados e que guardam surpresas. Mais reservada e misteriosa para o espectador está Manu, a diretora do centro. A atriz Corinne Masiero tem papel decisivo na trama, porém mantém-se distante, como um Estado já cansado de tudo.

Mesmo com estereótipos de gênero, idade, cognição e padrões de beleza, tudo junto e misturado em doses certeiras, as “invisíveis” assumem seus papéis com desenvoltura. São genuínas, francas, com histórias que chocam, mas conseguem acessar a ressocialização. Pelo menos por alguns momentos. Compartilham entre si as mesmas dores e a sororidade é o que as une o tempo todo.

Como terreno sagrado do cinema humanista, a França tem assumido nas telas com frequência as histórias de imigrantes que refletem a assimilação cultural que redesenha o país nas últimas décadas. Mathieu Kassovitz, Michel Leclerc, e mais recentemente Ladj Ly rasgam as fronteiras em suas obras. Louis-Julien, em seu terceiro longa, busca espaços no realismo social de lastro trabalhista, prioritariamente.

O tom leve e com cinematografia convencional garantiu ao longa recordes de bilheteria na França, o que significa uma boa exposição a um tema ignorado pela maioria. Seria uma vitória ter um sucesso similar no Brasil, que vê a população das ruas aumentar em 60% desde 2015. A maioria, negros e negras, resistem como podem à corrosão de sua humanidade. Dentro desse grupo, as mulheres se levantam todos os dias em busca de Manu, Hélène, Angélique e Audrey. Elas estão dentro de nós, é só olharmos ao redor e estendermos a mão. Mas, quem tem a coragem delas?

As invisíveis tem estreia prevista para esta quinta-feira, 20 de fevereiro, nos cinemas de todo o país.

Confira o trailer abaixo:

Sobre Magah Machado

Paulistana, designer e analista de informação, entusiasta de expressões artísticas livres e autênticas na dança, cinema, música e fotografia como motores propulsores de mudanças no mindset careta e convencional