Movimento Católicas Pelo direito de Decidir em protesto pela legalização do aborto e contra a opressão nos espaços de fé

Reféns da fé | Como historicamente o Cristianismo controla o corpo da mulher

Durante séculos o cristianismo oprimiu as mulheres, as colocando em posição de subalternidade em relação aos homens e coibindo até mesmo a sua auto-descoberta . Isso ainda acontece? O que mudou?

Ao longo da história, vários sistemas e organizações contribuíram para a manutenção da desvalorização e opressão das mulheres, uma dessas organizações é o cristianismo. O Cristianismo se constitui em uma religião patriarcal, que tem a figura do homem centralizada em detrimento da figura da mulher. O protestantismo, surgido a partir da cisão da Igreja, iniciada por Lutero, segue lógica parecida.

Raízes patriarcais: Sara entrega sua serva Agar para se deitar com Abraão e lhe dar filhos (reprodução: recanto das letras)

Vejamos alguns aspectos que são pautados pela Bíblia, nos quais baseia-se a visão de grande parte das igrejas e da sociedade sobre as mulheres, apesar de a Bíblia, principalmente o velho testamento, remeterem a outro contexto e tempo.

1 – Período antigo (Hebreus/Israel)

A sociedade hebraica, que segundo os textos bíblicos tem suas origens na figura de Abraão, constituiu-se uma sociedade patriarcal, tendo a figura masculina como central em detrimento da figura feminina. É nessa sociedade e em suas leis e normas que o cristianismo pauta sua conduta.

Para os hebreus, e para a maior parte das sociedades hoje, tendo por base o livro de Gênesis 3, foi por intermédio da mulher que o pecado entrou no mundo e com ele todos os males existentes até os nossos dias:

“E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela.” (Gênesis 3:6)

“E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.” (Gênesis 3:16)

Sobre a menstruação, Levíticos 15 diz o seguinte:

“Quando uma mulher tiver fluxo de sangue que sai do corpo, a impureza da sua menstruação durará sete dias, e quem nela tocar ficará impuro até à tarde. Tudo sobre o que ela se deitar durante a sua menstruação ficará impuro, e tudo sobre o que ela se sentar ficará impuro.” (Levíticos 15:19 e 20)

É importante ressaltar que Levíticos também pauta os fluxos que possam existir nos corpos masculinos, no entanto, por ser uma sociedade patriarcal o peso recai com mais força sobre a mulher.

O estupro na Bíblia é tratado da seguinte forma:

“Quando houver moça virgem, desposada, e um homem a achar na cidade, e se deitar com ela, então trareis ambos à porta daquela cidade, e os apedrejareis, até que morram; a moça, porquanto não gritou na cidade, e o homem, porquanto humilhou a mulher do seu próximo; assim tirarás o mal do meio de Israel.” (Deuteronômio 22: 23 e 24)

2 – Idade Média

Séculos depois , durante o período medieval, os versículos bíblicos continuam servindo como base para pautar a conduta e a visão da igreja e da sociedade em relação ás mulheres.

Na Idade Média as mulheres eram descritas da seguinte forma: S. João Crisóstomo afirma que “Não é bom se casar: o que mais é a mulher além de uma inimiga da amizade, uma inescapável punição, um mal necessário, uma tentação natural, uma calamidade desejada, um perigo doméstico, um mal da natureza, pintada com cores suave” (Malleus Maleficarum: escrito na inquisição. Ler Rita de Lourdes de Lima).

Segundo o cristianismo foi através da mulher que o mal entrou no mundo. Daí a visão da mulher como um ser maléfico (reprodução: sete minutos)

3 – Idade Moderna

Durante o Renascimento, apesar do florescimento das ciências, a visão teológica machista da Igreja ainda impregnava a sociedade de modo que as mulheres curandeiras foram vistas como rivais da medicina e apontadas como perigosas. Na Idade Moderna muitas foram acusadas de bruxaria e sentenciadas à penitências e mortes, muitas delas na fogueira.

Muitas mulheres acusadas de bruxaria foram enviadas para a fogueira pela inquisição (reprodução: cleofas)

4 – Período contemporâneo (atualmente)

Atualmente a mulher ainda é oprimida, agredida de várias formas, privada de tomar decisões sobre a própria vida, estigmatizada e morta. Parte dessa responsabilidade é predomínio de ideais patriarcais e machistas que ainda vigoram no ambiente religioso e se estendem a várias áreas da sociedade.

Vejamos outros versículos nos quais se baseiam algumas igrejas, ainda hoje, para determinar qual deve ser, segundo essas igrejas, o comportamento das mulheres.

Sobre o comportamento da mulher nos espaços públicos, especificamente nos ajuntamentos cristãos:

“As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei. E, se querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é vergonhoso que as mulheres falem na igreja.” (I Coríntios 14: 34 e 35)

Recentemente pode-se observar o caso da menina de 10 anos, estuprada pelo tio durante quatro anos e engravidada pelo mesmo. Ao ser autorizada a interromper a gravidez, a CRIANÇA foi chamada de assassina por fundamentalistas religiosos.

Os mesmos foram para frente do hospital onde a menina teria a gravidez interrompida protestar contra o aborto e “em favor da vida”. Para os fundamentalistas, não importava a vida da criança, importava o dogma que proíbe o aborto em favor de um conceito de vida abstrato.

Fundamentalistas religiosos em frente ao hospital onde criança de 10 anos estava hospitalizada para interrupção da gravidez fruto de estupro (reprodução: revista fórum)

Muitas mulheres são induzidas a se calar diante das agressões, a “suportar em amor”, a orar para que seus maridos sejam “transformados”. Muitas acabam morrendo. Essas “orientações” são dadas por alguns líderes religiosos com base em versículos bíblicos, como os citados acima, que colocam a mulher “no seu devido lugar”.

Cenas do clipe da cantora gospel Cassiane. A violência doméstica é romantizada (reprodução: portalt5)

Ainda hoje as mulheres são renegadas e marginalizadas caso não se submetam ou escolham não se submeter. São apedrejadas socialmente e, muitas vezes, agredidas fisicamente e mortas por terem “transgredido os mandamentos do senhor”. Aos homens são dados os privilégios de se comportarem como quiserem e mesmo quando seu comportamento é criminoso ou foge da norma cristã os mesmos são acobertados.

5 – O que mudou?

Obviamente que quando falamos de Cristianismo (catolicismo e protestantismo) estamos falando de um sistema religioso e não de todos os cristãos. É preciso não generalizar para que se possa abrir espaço para o diálogo. Existem hoje grupos de teólogas feministas, Católicas Pelo Direito de Decidir, Frente Evangélica Pela Legalização do Aborto que tem lutado contra as estruturas de opressão dentro do Cristianismo, além de grupos cristãos engajados em diversas lutas sociais e políticas das ditas minorias.

Movimento Católicas Pelo Direito de Decidir em protesto (reprodução: aulasderedacaoonline)

Mas tais segmentos diferenciados são a exceção que confirmam a regra. São a prova de que muitas das problemáticas enfrentadas pela mulher atualmente encontram sua manutenção no pensamento religioso que dá liga aos interesses capitalistas na manutenção das estruturas de domínio. É válido lembrar que a sociedade patriarcal surge antes do Cristianismo, mas que o mesmo assume tal postura e mantém esse pensamento até nossos dias.

A luta contra o patriarcado, contra o machismo e suas ramificações ainda é longa, não se restringe a essa banda podre do cristianismo e não se pretende aqui esgotar o tema, ao contrário, intenciona-se instigar os leitores e leitoras a se aprofundarem em conhecer o mesmo. Essa luta é histórica, necessária e urgente, de todas e todos nós.

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