Conheça as novas regras para intervenções de afirmação de gênero, como hormonização e cirurgias

O Conselho Federal de Medicina atualizou a resolução sobre o atendimento de Travestis e Transexuais. Saiba o que mudou e o que precisa mudar

A resolução 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que dispõe sobre o cuidado de travestis e transexuais, atualizou conceitos e regras para atuação de equipes de saúde nas intervenções de afirmação de gênero, como hormonização e cirurgias. As mudanças seguem a tendência da 72º Assembleia Mundial da Saúde que aconteceu em 2019, onde foi retirada a classificação da transexualidade como transtorno mental, na Classificação Internacional de Doenças (CID).

Isso mesmo que vocês leram, apenas em 2019 a transexualidade foi oficialmente tirada da lista de transtornos mentais. Sem dúvida, uma grande conquista para a comunidade trans.

Desde 1997, quando as cirurgias de afirmação de gênero só eram possíveis em caráter experimental e em protocolos de pesquisa, o CFM publica resoluções com o intuito de regulamentar as intervenções médicas possíveis para a população travesti e transexual, rompendo a passos muito lentos paradigmas e preconceitos. Até o ano passado, a transexualidade estava inclusa na classificação de transtornos mentais e o papel das equipes de saúde incluiam o diagnóstico e os chamados tratamentos para redesignação sexual.

O que mudou?

A resolução anterior (1.955/2010) – que havia sido publicada há 10 anos – introduz conceitos como “ser o paciente transexual portador de desvio psicológico permanente com tendência a automutilação” e que “a transformação da genitália constitui a etapa mais importante no tratamento de pacientes com transexualismo”. Podemos destacar as palavras paciente, desvio, tratamento e transexualismo para demonstrar o quanto esses conceitos estão enraizados na ideia arcaica de que o médico era capaz de definir ou diagnosticar uma pessoa como transgênero, que a cirurgia era o determinante para a definição de transexual e que essas pessoas teriam uma patologia passível de tratamento.

Esse tipo relação vertical e de conceituação impositiva esbarram na concepção de que transexual é a pessoa que se define com uma identidade de gênero diferente do sexo designado ao nascimento; e que pode ou não querer realizar intervenções médicas clínicas e cirúrgicas para contribuir na afirmação de gênero. A nova resolução reconhece essa concepção e flexibiliza o acesso a essas intervenções.

A idade mínima para início da hormonização cruzada passou de 18 para 16 anos. A realização de cirurgias de afirmação de gênero foi de 21 para 18 anos. Eram necessários 2 anos de acompanhamento por uma equipe multidisciplinar – incluindo psicólogos, psiquiatras, ginecologistas, endocrinologistas e urologistas – além do início do uso de hormônios antes de serem autorizados procedimentos cirúrgicos. Agora apenas um ano é necessário e a hormonização não é imprescindível, o que de certa forma reforça a liberdade da pessoa trans em definir quais modificações corporais deseja.

O que precisa mudar?

A nova resolução atualiza conceitos, mas ainda continua patinando quando tenta estabelecer, por exemplo, o que é ser travesti: “a pessoa que nasceu com um sexo, identifica-se e apresenta-se fenotipicamente no outro gênero, mas aceita sua genitália”. Acima dos erros contidos na definição, está o erro em querer definir; afinal, quem deve melhor definir o que é ser travesti, senão elas mesmas?

Para isso, transcrevo a definição encontrada no site da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA): travestis são pessoas que vivem uma construção de gênero feminino, oposta à designação de sexo atribuída no nascimento, seguida de uma construção física, de caráter permanente, que se identifica na vida social, familiar, cultural e interpessoal, através dessa identidade. A intervenção genital não é, portanto, a base de nenhum conceito nas diferentes identidades de gênero. O texto da resolução ainda utiliza nomenclaturas que mereceriam adaptação como ao considerar afirmação de gênero um procedimento terapêutico, reforçado em termos como “hormonioterapia’ em vez de “hormonização”.

Ainda são necessárias mudanças na concepcão da transexualidade pela medicina e por seus órgãos reguladores, a partir da assimilação de que identidade de gênero é uma autodefinição e não é dependente de uma definição ou uma intervenção médica. O papel das equipes de saúde deve ser auxiliar a pessoa trans em alcançar as modificações corporais que deseja, dentro de um contexto de acolhimento e atenção psicossocial. Para isso, é fundamental a escuta e participação social de travestis e transexuais na elaboração das resoluções e de políticas de saúde.

Sobre Tiago Oliveira

Retirante nordestino, com formação médica em ginecologia pela USP. Gay, encontrou sentido pra vida na luta por direitos humanos e na promoção de justiça social. Gosta de arte, de viagens, de ciência, mas principalmente de pessoas. Toca violão, canta no chuveiro, escreve poemas e tatua o corpo.