A epidemia do preconceito: a trajetória do HIV/AIDS no Brasil

O ano de 1980 pode ser lembrado de diversas formas no cenário político: o boicote dos EUA aos Jogos Olímpicos em Moscou/URSS, a visita do Papa João Paulo II ao Brasil, a greve no ABC paulista, a fundação do Partido dos Trabalhadores e a aprovação de uma emenda parlamentar que garantiria as eleições diretas para governadores e senadores durante a ditadura civil-militar. Uma nova década se iniciava após o fervilhão de movimentos que passaram a intensificar a organização e lutas pelo restabelecimento da democracia. O movimento LGBT, a exemplo, surgiu sob o marco da fundação do grupo Somos em 1978 e do Grupo de Ação Lésbico-Feminista em 1980.

Em meio às lutas políticas, um vírus mudou toda nossa história e a vida de milhões de pessoas no mundo. Em 1980, deu-se o primeiro caso de AIDS no Brasil, que viria a ser assim classificado apenas dois anos depois, na cidade de São Paulo. Os homens haviam desenvolvido o sarcoma de Kaposi, o mesmo tipo de câncer que pessoas com AIDS apresentaram nos EUA, onde os próprios estiveram anos antes. Em 1983, declarou-se a primeira morte no Brasil: o estilista Marcus Vinícius Resende Gonçalves, de 31 anos, e impactou a comunidade LGBT. O “câncer gay”, a “peste gay” ou a “doença dos 5 H (homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos (usuários de droga injetável) e hookers (profissionais do sexo)eram os nomes atribuídos à AIDS antes do vírus e da doença serem identificadas e classificadas. As primeiras pessoas infectadas pelo vírus HIV na epidemia da década de 70 foram estadunidenses, haitianos e populações da África Ocidental, embora seja comprovado que a primeira morte em decorrência da AIDS tenha ocorrido em Kinshasa, no Congo, em 1959. A prevalência de homossexuais e pessoas usuárias de heroína injetável reforçou a disseminação do preconceito e marginalização de grupos vulneráveis. Os pacientes apresentavam pneumonia ou um tipo raro de câncer de pele e a doença foi logo apresentada como “imunodeficiência relacionada aos gays” ou Grid.

Manchete do jornal Notícias Populares, em 1983

Parte da militância do movimento homossexual brasileiro aderiu à hipótese de que havia uma conspiração médica a fim de normalizar e estigmatizar os homossexuais enquanto outra pensava que a doença estava restrita apenas à elite que detinha condições financeiras de viajar para o exterior. No entanto, ativistas brasileiros foram aos EUA em 1983 e perceberam que a doença era a principal preocupação dos militantes gays estadunidenses. Eles voltaram ao Brasil para organizar respostas coletivas à epidemia junto aos demais que não acreditavam na hipótese conspiratória, ainda que a higienização e normalização da homossexualidade estivessem postas na sociedade. Se a década de 80 assistiu à um declínio do ativismo em torno de pautas específicas relacionadas à homossexualidade, a luta contra a AIDS foi impulsionada por grupos formados por militantes homossexuais. O Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS (GAPA), A Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA, formada por militantes do Somos-RJ) e o Grupo Pela Vidda, fundado por Herbert Daniel, ex-militante da luta armada contra a ditadura, e demais companheiros, foram os principais responsáveis por programas estaduais desenvolvidos ao longo das décadas de 80 e 90. Em 1985, dois anos após o isolamento do vírus, o teste para detecção do HIV foi desenvolvido e o estado de São Paulo foi o primeiro no país a estruturar um programa de controle da AIDS no Brasil. Em 1988, o Ministério da Saúde instituiu o Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e, nesse mesmo ano, foi marcado o dia 1º de dezembro como o dia mundial de luta contra a AIDS na Assembleia Mundial de Saúde. Apenas em 1991 as sociedades civis participaram das implementações das políticas públicas e os antirretrovirais passaram a ser distribuídos gratuitamente pelo SUS, quase 10 anos após o diagnóstico do primeiro caso no país.

Jornal da década de 1980. (Foto: Reprodução)

A virada dos anos 80 para os anos 90 foi marcada por embates entre as ONGs de defesa dos direitos das pessoas com HIV/AIDS e o governo federal. Campanhas elaboradas pelo Ministério da Saúde, tais como “Eu tenho AIDS e vou morrer” e “Se você não se cuidar, a AIDS vai te pegar”, foram duramente criticadas por estas organizações bem como por movimentos de mulheres, de profissionais da saúde e do sexo. As travestis e pessoas transexuais começaram a organizar o Encontro Nacional de Travestis e Transexuais que Lutam contra a AIDS (Entlaids) em 1993, que ocorre até hoje. A força da coletividade e das redes de militância fiscalizava, elaborava e participava das políticas públicas direcionadas às pessoas com HIV/AIDS e a sociedade debatia de forma mais ampla questões relacionadas ao sexo e à sexualidade. No entanto, a imprensa ainda persistia na sombra do preconceito e o horror do “câncer gay” ainda não havia sido superado: é notória a capa da Revista Veja de 1989 que trazia Cazuza com a manchete “Cazuza: uma vítima da AIDS agoniza em praça pública”. Manchetes e reportagens sobre HIV/AIDS ainda pairavam sobre a homossexualidade, quadro radicalmente modificado ao longo dos anos 2000.

Travestis e pessoas transexuais no ENTLAIDS 2017. (Foto: Reprodução)

O programa brasileiro de prevenção e tratamento do HIV/AIDS é mundialmente reconhecido até hoje, principalmente pelo tratamento gratuito ofertado no SUS. A partir de 2006, as campanhas do governo federal envolveram pessoas que vivem com HIV/AIDS para desmistificar a doença e combater a estigmatização. “A vida é mais forte que a AIDS” foi o slogan escolhido em 2006 para a campanha que trazia pela primeira vez pessoas comuns de diversas orientações sexuais e identidades de gênero, bem como casais sorodiscordantes. Entre 2003 e 2013, a taxa de detecção caiu 9% e a mortalidade caiu 10,9%. Esses dados nos mostram outras condições de vida das pessoas soropositivas após décadas de luta por campanhas de conscientização, por testagem e tratamento. Uma nova viragem na história do HIV/AIDS no Brasil se deu nesta década de 2010: o “Viva melhor sabendo” e a lei 12.984. O Ministério da Saúde passou a oferecer o teste rápido nas sedes das em parceria com organizações da sociedade civil – dentre elas, as LGBT e as de proteção dos direitos das pessoas com HIV/AIDS – para além das unidades básicas de saúde em 2014. Esse marco ampliou a capacidade de alcance do diagnóstico a nível nacional e fortaleceu o diálogo do governo com os movimentos. A facilidade de acesso para quem não recorria aos postos de saúde ou hospitais para exames de rotina mostra um esforço conjunto de resposta ao HIV com novas estratégias que mudam o quadro do acesso à informação sobre o vírus e a doença. No mesmo ano, a então presidenta Dilma Rousseff sancionou a lei que tornou crime a discriminação contra pessoas que vivem com HIV e AIDS e proíbe a negação de trabalho ou matrícula em instituições de ensino por conta da sorologia positiva, além de divulgá-la na condição de ofensa. O texto circulou no Congresso Nacional por 10 anos e a legislação torna-se importante na luta das pessoas soropositivas contra o preconceito dos meios de comunicação, da sociedade e dos governos que tanto atingiu e estigmatizou as milhares de pessoas mortas em decorrência da AIDS.

Como nada em nossa história nos é dado de forma natural e estabelecida para sempre, o presidente eleito já havia declarado anos atrás que não concordava sobre a distribuição gratuita e universal do tratamento para HIV/AIDS. Não sabemos o futuro reservado ao SUS. Quando olhamos para a história das pessoas que se organizaram, enfrentaram a negligência dos governos ditatoriais e civis e demandaram coletivamente políticas públicas nos níveis municipal, estadual e federal, é possível ter a certeza da força da luta que leva a contratempos, derrotas e vitórias. Levou-se uma década para a implementação do tratamento, mais uma para campanhas oficiais de combate ao preconceito e outra para uma legislação específica contra a discriminação. A próxima década que se avizinha também será de mais lutas em defesa dos direitos como nunca deixou de ser no caminho trilhado até aqui. A vida é mais forte que a AIDS e todos nós somos mais fortes que Bolsonaro.

Sobre Rodolfo Tavares

Historiador apaixonado em estudos em sexualidade e cinema. Criador do @lgbthistoria no Instagram, onde posta sobre a história e cultura da população LGBT no Brasil. Amante do cinema nacional e tem referências em Kleber Mendonça Filho, Anna Muylaert e Lúcia Murat.