A Luz no Fim do Mundo | Ficção científica explora de forma intimista a relação entre pai e filha

Em mundo pós-apocalíptico em que mulheres foram mortas por vírus desconhecido, pai tenta proteger filha, única sobrevivente da tragédia. O filme estreia nesta quinta (17) nos cinemas de todo Brasil.

A polêmica: uma sociedade sem mulheres em que os gêneros estão sendo revistos não caiu muito bem para a indústria afetada pelo movimento #MeToo. Na première de seu novo longa no Festival de Berlin deste ano, o ator americano Casey Affleck não escapou de críticas apontando sua obra como uma resposta às acusações de assédio sexual que sofreu na realização de seu primeiro filme Eu ainda estou aqui (2010) e também do #MeToo. O ator negou em comunicado oficial e segue promovendo seu filme.

Esta controvérsia pode não emergir aqui no Brasil onde o trabalho do americano é elogiado. A introspecção de Casey Affleck já é bastante conhecida nas telas. Sua atuação contida que, meticulosamente, vai revelando seus personagens, como em Manchester à beira-mar (2016), não lhe rendeu um Oscar à toa. Essa sua qualidade favorece um bom estudo de personagem e convida o espectador a testemunhar a história de um ponto de vista privilegiado: muito próximo do acontecimento da ação no filme.

Em A luz no fim do mundo (2019), o ator faz, com propriedade, essa transposição de olhar para a sua câmera. Assinando o próprio roteiro, trabalhado há dez anos, Affleck tem o controle de tudo e não se furta a deixar essa marca artística que lhe trouxe o reconhecimento. Por isso, seu mais novo filme tem takes longos e um caráter intimista. Para quem vencer os primeiros dez minutos de uma entediante história desconexa sobre a Arca de Noé que Affleck conta para sua filha Rag (Anna Pniowsky) no aperto de uma tenda de camping, o filme se mostrará menos erradio. Mas, não menos verborrágico.

O fim do mundo em questão é o resultado de um vírus desconhecido que dizimou as mulheres há nove anos. Rag é a filha de Affleck com Elisabeth Moss, que morreu logo após o parto. Para manter esse misterioso caso de sucesso longe das especulações da ciência e da curiosidade insondável de outros homens, pai e filha seguem nômades por uma floresta ao redor de uma Los Angeles pós-apocalíptica.

As estações que se alternam criam com muita eficiência a tensão crescente da narrativa: do outono ao gélido inverno, a diminuta família anda sem parar e escapa como pode de grupos de homens ameaçadores. O verde se torna branco. O branco ficará manchado de vermelho. O frio e a solidão estão em todos os lugares.

Anna Pniowsky é Rag em filme de Casey Affleck

Em perfeita sintonia com Affleck, Anna Pniowsky concentra todas as emoções necessárias em Rag para dar um ar natural à garotinha que perde a inocência. E sua entrega e sensibilidade são cativantes. Esse naturalismo dos protagonistas só se perde um pouco devido à verborragia do roteiro, que poderia ter sido evitada.

Enquanto acompanhava o crescimento dos dois meninos com Summer Phoenix, irmã mais nova de Joaquin Phoenix, Casey refletia sobre as piores circunstâncias para se criar uma filha. Seu roteiro foi sendo absorvido por ele, primeiro como autor, depois como diretor, depois como protagonista

Em sua conclusão, o diretor escolheu o caminho do meio para retratar o que vislumbra como um cenário muito menos agressivo que a aclamada série Handmaid´s Tale ou mesmo o mexicano Compra-me um revólver. Affleck rejeita a barbárie. Há alguma esperança de civilidade, mas será preciso um amadurecimento.

Em sua marcha, pai e filha saem da escuridão da floresta úmida, acordando de noites sob a luz fraca de uma lamparina, num espaço confinado da barraca de camping, e seguem por casas abandonadas e estradas que vão se embranquecendo e refletindo mais e mais luz. Depois de imersos confortavelmente em sua própria desgraça, absorvendo o silêncio e o isolamento, terão que compartilhar um pouco de seu sofrimento, pois o fardo tornou-se impossível de ser carregado.

A decupagem de Adam Arkapaw trabalha este percurso com lógica clara: sai da intimidade do plongée para a abertura de planos gerais em meio à neve densa e inóspita. A câmera pouco se movimenta, deixando o público observar à vontade a escalada de conflito. A edição competente de sons ao redor da floresta dá lugar a pequenas inserções de vinhetas que se alongarão em trilhas soturnas e muito tristes.

Casey Affleck em cena A luz no fim do mundo, em que assina o roteiro e a direção

Isso se mostra uma estratégia muito eficaz por que o clímax é uma violência que aprisiona e choca o espectador com um peso muito maior. Na dose certa, no desenlace convincente. Nada de original, porém, coerente. E coerência já é uma grande vantagem em uma escolha cinematográfica já tão explorada.

Na expiação da dor, Rag sai fortalecida. A introversão de sua figura mirrada se dilui e um feminino encorpado surge, um amor à aventura, um porto seguro para seu pai. Affleck extravasa toda a desolação da paternidade sobre a menina e Anna a transforma em gratidão filial. Não ignora o consanguíneo, mas constrói sua identidade a partir disso e deixa claro que a orientação mudou.

Na dureza da luz do fim do mundo, no deserto nevado dos homens, assim, floresce a rosa de Rag. Ou, no original em inglês, com muito mais sentido: “a luz da minha vida”. Na contenda em que está colocado, o tempo dirá se a luz é natural ou não.

A luz no fim do mundo tem estreia prevista para dia 17 de outubro nos cinemas de todo o país.

Confira o trailer abaixo.

Sobre Magah Machado

Paulistana, designer e analista de informação, entusiasta de expressões artísticas livres e autênticas na dança, cinema, música e fotografia como motores propulsores de mudanças no mindset careta e convencional