Green Book: O Guia | Saga de pianista negro em plena segregação racial é tema de filme

Para divertir, para saber e para refletir. Green Book é um filme necessário e estreia dia 24 de janeiro nos cinemas de todo o país.

Em pleno movimento pelos direitos civis nos EUA durante os anos 60, um ítalo-americano do Bronx que trabalha como segurança do night club Copacabana perde seu emprego temporariamente e aceita ser o motorista de um estrelado pianista negro em sua tournée de 8 semanas pelos sul do país.

Por si só, o argumento do mais recente filme de Peter Farrelly já daria livros, séries, e, naturalmente, road movies. Baseada na história real do pai de Nick Vallelonga, não por acaso um dos roteiristas, a narrativa é bastante eficiente para catapultar o sucesso do longa. Mas, para não fugir à regra de produções ambiciosas concorrentes ao Oscar, Green Book: O Guia adensa-se com algumas polêmicas.

Farrelly e seu irmão Bob, famosos por suas comédias Quem vai ficar com Mary?(1999), estrelada por Cameron Diaz, e Débi e Lóide (1994), têm vasta contribuição para este gênero cinematográfico. Porém, Farrelly foi acusado de ter exibido seu pênis para Cameron Diaz durante as filmagens em que trabalharam juntos. E para piorar, descobriu-se que Nick Vallelonga tuitou mensagem preconceituosa contra muçulmanos logo após o 11 de Setembro. Inaceitáveis, os casos foram alvo de muitos protestos. Tanto Nick quanto Peter Farrelly já vieram à público pedir desculpas.

Quem as aceitou e virou a página, como por exemplo, Kareen Adul Jabbar, ex-astro na NBA e hoje colunista do Hollywood Reporter, afirma que Farrelly foi sincero. Jabbar vai mais longe e tira o peso das controvérsias sobre a incuracidade de fatos históricos mostrados no filme “(…) Filmes sobre personagens e passagens históricas não são sobre os fatos em si, são sobre algo muito mais elusivo e importante: verdade. Especificamente, eles são sobre como os eventos do passado jogam luz nas escolhas que enfrentamos no presente”.


Green Book: O Guia dá voz a pianista negro e gay durante movimento dos direitos civis americanos nos anos 60
Foto: divulgação

A fala de Jabbar levanta alguma identificação com o personagem de Mahershala Ali, o pianista Donald Shirley. Seu ponto de vista é indiscutivelmente relevante. Afinal, mesmo com a produção executiva de Octavia Spencer, quem dá as cartas na construção narrativa dos roteiristas, brancos, é Viggo Mortensen, com seu Tony Lip violento nos punhos e nas palavras. Portanto, este é o espaço para se contrapor a visão de Don Shirley à de Tony Lip.

Farrelly diverge Don de Tony com a leveza da comédia que tanto exercitou em seus trabalhos, reforçando um tom de conciliação já familiar em Hollywood. Isso nunca será tarefa fácil em meio às condições de sub cidadania e subexistência a que os negros nos EUA estavam submetidos. Por outro lado, os imigrantes também não eram bem aceitos pelos americanos, e também experimentaram, em menor grau, desprezo e discriminação. E, para ambos, a criminalização da homossexualidade a qualquer tempo. Farrelly escolheu mostrar este contexto de desigualdade na sua estrutura dramática, com nuances atenuantes.

Green Book dá voz a pianista negro e gay nos EUA dos anos 60
Viggo Mortensen é Tony Lip, motorista que levará Don Shirley – Mahershala Ali em tour pelo sul dos EUA em 1962

Assim, esses representantes de grupos excluídos da sociedade americana da década de 60, um negro e um branco italiano, viajando juntos em um trabalho artístico pelo sul racista dos Estados Unidos tentam ganhar a simpatia da audiência com interações às vezes engraçadas, às vezes vergonhosas historicamente.

Como todo road movie por excelência, os planos gerais são explorados para revelar uma estrada síntese do clima entre os protagonistas, mas não predominam. Farrelly investe em enquadramentos mais intimistas, sem deixar de apreciar passageiro e motorista sob diversos ângulos. E com dosagem correta, a trilha sonora traz inflexões absolutamente marcantes na história, proporcionando alguns dos momentos mais emocionantes do filme.

Dado que os tradicionais papéis hierárquicos foram invertidos, Tony e Donald Shirley são objeto de escrutínio com lentes diferentes. Don Shirley encanta a alta sociedade com seu talento em shows e apresentações intimistas nas mansões de supremacistas, mas é mantido distante da curiosidade da audiência. Na sua retaguarda, próximo do espectador, Tony Lip irá exceder sua função de motorista e, claro, estreitar laços e proteger seu empregador. Previsivelmente, pode-se esperar que estes papéis serão trocados algumas vezes, mas sempre dialogando com figuras paternas prevalentes.

Green Book flerta com o melodrama, mas a química de Mortensen e Ali é tão empolgante que quase não há perdas sentimentais. Isto acontece quando Don Shirley sai do seu eixo para ter que explicar que vive isolado em sua invisibilidade, pois os brancos não o enxergam mais quando ele desce do palco e os negros tampouco se reconhecem em sua figura, pois não compartilham nada em comum com o músico, além da cor da pele.

Vivendo em um ostracismo auto-imposto involuntariamente, Don vai confiar que Tony o levará em segurança para se aventurar em outros núcleos sociais onde sua negritude, homossexualidade, refinamento, medos e solidão sejam acolhidos também, e não apenas seu talento musical e artístico. No timming correto, Tony Lip toma plena consciência de onde foi se meter e qual a transformação que a viagem trouxe para sua vida. Na cena final isso será validado, talvez com algumas lágrimas.

Para divertir, para saber e para refletir, é um filme necessário. Para um Oscar, vale um debate.

Na pavimentação de seu caminho para o maior prêmio do cinema americano, Green Book já arrebatou 3 Globos de Ouro: melhor ator coadjuvante (Mahershala Ali), melhor roteiro e melhor filme de comédia ou musical, além do prêmio de melhor filme pelo Sindicato dos Produtores.

Green Book tem estreia prevista para dia 24 de janeiro nos cinemas de todo o país.

Confira o trailer abaixo:

Sobre Magah Machado

Paulistana, designer e analista de informação, entusiasta de expressões artísticas livres e autênticas na dança, cinema, música e fotografia como motores propulsores de mudanças no mindset careta e convencional