A cultura do cancelamento deve ser cancelada?

Se colocássemos sob nós mesmos uma lupa, será que também não seríamos cancelados? Em sua coluna de comportamento, a psicóloga Caroline Ariel disserta sobre a cultura do cancelamento

Cancelar alguém ou não cancelar: eis a questão. Não sabemos exatamente se Shakespeare apreciaria a referencia ou se nos cancelaria. O que sabemos, entretanto, é que enquanto ele se referia a morte física nesta passagem de Hamlet, a cultura do cancelamento também tem como objetivo a morte, nem que seja a virtual. O que nesses tempos de tecnologia significa, talvez, quase a mesma coisa.


Recentemente, em mais um episódio de Cancela Brasil, novela atualmente exibida a todo tempo e em todos os lugares, a personagem cancelada da vez é Paolla Carosella. Em uma reviravolta surpreendente, a então mocinha foi alçada ao cargo de vilã depois de usar o termo ‘obesos’, ao se referir a condições de adoecimento causados por alimentação industrializada, sendo então acusada de gordofobia.

Depois de muita confusão, dedo no c* e gritaria, disputa pra ver quem ia cancelar quem primeiro e muito debate acalorado, aparentemente algum ser de luz conseguiu explicar para a chef como ela poderia ter se explicado melhor sem ofender ninguém, motivo pelo qual Paolla voltou ao Twitter para se desculpar. A pergunta que fica é: precisa mesmo disso tudo, meu povo?

Veja bem, achamos de extrema importância a possibilidade que as redes sociais proporcionaram de dar voz àqueles que historicamente foram silenciados pela hegemonia das classes dominantes e dos discursos daqueles que estavam no poder. O salto tecnológico e a democratização do acesso às tecnologias de comunicação (com ressalvas), assim como – desde o final dos anos 80 no Brasil – o retorno a um regime democrático, permitiram que muitos de nós, antes amordaçados diante do mundo, pudéssemos dar voz aos nossos anseios. E achamos isso fantástico.              

Dito isto, achamos importante trazer algumas questões, talvez um pouco controversas. Neste momento, pedimos a você, meu querido jovem militante: descanse. Nos leia até o final.   

Traremos para o nosso diálogo nosso querido Michel Foucault e sua microfísica do poder, que tentaremos trocar em miúdos, porque vocês não são obrigados a nada. NADA! Pois bem, esta gay belíssima, desconstruiu em seus trabalhos a tese de que o poder estaria nas mãos das grandes instituições como Igreja, Estado e corporações, mas que o poder está em todos os lugares e ganha força nas redes formadas pelos indivíduos.      

Claramente, estas instituições tem um longo histórico de organização coletiva que permitiu sua permanência no poder e sua dominância sobre minorias (lembrando que o termo ‘minoria’ não se refere a uma minoria numérica, mas ao afastamento das posições de poder e igualdade). Agora, meus amados, o século XXI trouxe um plot twist que talvez nem Shayamalan conseguisse trazer (cinéfilos high five!).

Foucault, infelizmente, não viveu para ver esse ‘booom’ tecnológico e todos nós perdemos com isso, mas sua valiosa obra ainda demonstra que a organização dos indivíduos em redes é fundamental. Redes, internet…  Sabemos que você, meu jovem conectado, já notou esta semelhança.  Sim, não se trata de uma coincidência.

A internet permitiu que nos encontrássemos. Você, jovem militante perdido numa cidade conservadora do interior de Minas Gerais (cof cof cof  isto não é um exemplo aleatório cof cof cof), pôde  finalmente encontrar ideias e ideais iguais ao seu e esse encontro é absolutamente indescritível. Você, reacionário, libertário, identitário… algumacoisa-ário, considerado a boa e velha ovelha negra da família, você pôde  encontrar os seus. E não tem nada melhor do que isso. Estamos felizes demais por você.  Você se empoderou.  

Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades – já dizia o filósofo fictício Tio Ben. Você tem exercido com responsabilidade e sabedoria o poder que a rede lhe proporcionou? Achamos que às vezes não. Como já dizia Nietzche, por detrás de sua imensa bigodeira:

“Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.”

E não estamos confundindo a sua resistência com a violência daqueles que historicamente lhe oprimiram, estamos ao seu lado. Nosso objetivo é fomentar a reflexão. 

Com todas as ferramentas que temos disponíveis a apenas um clique de distância, todo esse poder contido, muitas vezes, na palma da nossa mão (literalmente), não lhe parece razoável usar dessa vantagem, que outras gerações não tiveram, para agirmos com responsabilidade?   

Como podemos nós, do alto de nossos narizes virtuais, decidirmos em um milésimo de segundo, quem vive ou morre na internet? A quem daremos ou não a oportunidade de se explicar? Quando nos tornamos carrascos e juízes dos réus que nós mesmos elegemos sem oportunidade de defesa?

 Existe um termo que os comportamentalistas da psicologia chamam de “comportamento de manada” e qualquer analogia com gado, neste momento, não é mera coincidência. Este termo descreve como seres humanos em situações sociais tendem a imitar o comportamento de outros. Em que ponto da nossa crítica nos aproximarmos daquilo que criticamos? Repare bem, não estamos insinuando um objetivo perverso, mas falando do descuido ao compartilhar informações sem verificar a veracidade. Numa era de crítica ferrenha às fake news que tanto enganaram nosso bom povo, somos nós mesmos capazes de criar nossa própria mamadeira de p*roca? Orgulhamo-nos disso?

Que discursos e práticas opressoras devem ser combatidos, disso não temos dúvidas. Mas nos rebaixaremos a usar das mesmíssimas armas que nos vitimaram durante todo esse tempo? Seremos nós aqueles que se sujeitarão a negar ao outro a oportunidade de reflexão e aprendizado?

Nosso cancelamento tem um prazo? Estamos dispostos a ensinar e a promover o debate sadio fora de uma ‘polarização odienta’ (se você leu essa passagem com sotaque nordestino pegou a referencia certa) e a promover os fundamentos de uma democracia? Ousaremos encarnar essa figura divina, sem ao menos um mea culpa, como se nunca tivéssemos errado? 

Quem de nós, no amago das nossas vidas particulares e pensamentos sobreviveria a vigilância do Grande Irmão? Se tivéssemos todo o passado revirado, as redes sociais inspecionadas e a vida exposta nos mais íntimos e cruéis detalhes… Você garante que não seria cancelado?

  Nós não garantimos. Não é algo que nos orgulha. Mas é algo que é inerente a nossa condição humana. Às vezes, nosso olhar está tão focado em corrigir as mazelas do mundo (um objetivo justíssimo), que nos esquecemos de olhar pra dentro e corrigir nossas próprias mazelas.     

Esses dias, num milésimo de segundo, alguém viu um homem estalando os dedos durante uma manifestação antirracista nos EUA, e decidiu arbitrariamente que esse homem estava fazendo um sinal associado a grupos supremascistas brancos. Essa pessoa se tornou juiz e carrasco com apenas um clique e o homem foi sumariamente condenado, antes de alguém ceder espaço para se defender e mostrar que alhos não eram bugalhos. Pouco servirá a explicação para reconstruir a vida de alguém que teve sua intimidade exposta para centenas de milhares na internet. 

Nós não estamos dispostos a ocupar esse lugar perverso, preferimos desviar um pouco o olhar do abismo, antes que sejamos consumidos pela sua escuridão hipnótica. Chegar aqui hoje e criticar a nós mesmos é tarefa das mais árduas, essa desconstrução não é fácil. Mas nenhum de nós chegará muito longe se apelarmos aos extremismos que queremos combater. No fim das contas, a questão é cancelar o cancelamento compulsório, irresponsável, demagogo e falacioso. Mesmo que isso signifique cancelar a nós mesmos de vez em quando.    

E você, o que pensa sobre a cultura do cancelamento? Deixe sua opinião em nossos comentários e contribua pare este debate <3

Sobre Caroline Ariel

Psicóloga, feminista, cacheada e mineira. Não necessariamente nessa ordem. Uma vida dividida entre o café e a cevada. Adoro cozinhar, bordar e, neste momento, customizar roupas. Eterna otimista.