Temporada | Longa nacional empodera a mulher negra, gorda e periférica

Quando um país continental como o Brasil se vê à beira de ficar sem Justiça do Trabalho, depois de tantos reveses nos direitos de um trabalho minimamente digno, o mais recente filme de André Novais de Oliveira, Temporada (2018) chega com várias questões sobre este e outros temas.

Para os 13,2 milhões de desempregados (IBGE, 2018) a informalidade, o subemprego, a ocupação e os bicos dominam seus sonhos, em todos os estratos sociais, com maior intensidade entre os mais vulneráveis, naturalmente. Quem conseguir se virar melhor com estas incertas oportunidades, talvez possa subir acima da linha da miséria.

Por outro lado, conseguir uma vaga em um inexpressivo concurso público e entrar nas estatísticas de pleno emprego com carteira assinada é um pequeno alento que pode alavancar trilhas de progresso, mesmo que pequenas. É o caso de Juliana (Grace Passô, prêmio de Melhor Atriz no 51º Festival de Brasília, 2018)). Apesar do emprego estável como agente de combate às endemias do governo de Minas, vive com um salário miserável que mal garante seu próprio sustento, mas conseguiu sair do desemprego. E como mulher, negra, gorda e com um marido também com um trabalho precário, seu progresso é admirável.

Ao deixar Itaúna, no interior do estado, para assumir esta função não qualificada na periferia de Contagem, na área metropolitana de Belo Horizonte, consegue sua segunda vitória: é um emprego com clima bastante amigável. Quer mais? Juliana vai morar em uma pequena casa alugada, um achado que uma prima lhe concedeu. Espera alguns meses pelo marido, para que venha morar junto dela e também buscar melhores opções de trabalho, mas descobre que sua vida entrou em um novo ciclo. Amparada apenas pelos colegas de sua reduzida equipe de agentes, Juliana iniciará uma jornada ascendente de valor incalculável.

Grace Passô nos mostra como faz de um limão uma deliciosa limonada: absolutamente fora dos estereótipos cinematográficos e padrões da sociedade brasileira, apesar de representar uma boa parcela da população feminina, sua Juliana não tem autocomiseração nem falso orgulho. Tampouco é falastrona ou desconfiada demais, só na medida de sua mineirice. Mas, tem valores claros e um mínimo de segurança para se arriscar e aguentar as consequências. Assim, Juliana conquista a amizade de Russão (Russo Apr, prêmio de Melhor Ator Coadjuvante no 51º Festival de Brasília, 2018, o gordinho bonachão da turma, e de sua chefe Lúcia (Rejane Faria). Mais importante: explora sua sexualidade com Jairo (Renato Novaes), vivendo uma suave cena de sexo entre pessoas gordas que quebra todos os tabus do cinema brasileiro recente. Como se não bastasse, também ganha a confiança dos moradores do bairro de Contagem, por onde desce e sobe ladeiras, entrando na casa de cada um para guerrear contra mosquitos e outras pragas, quando, na verdade, está lutando contra seus próprios demônios.

Apostando na espontaneidade, André Novais relata em entrevista que dirige seus atores para que sejam naturais e isso transparece no filme. É um ganho que permite uma certa contemplação e favorece a que este recorte da sociedade, a população negra da periferia, especificamente a mulher, geralmente imersa em um mutismo ignorado, ganhe voz. Em mais de uma cena esta questão está posta explicitamente: uma, envolvendo a chefe de Juliana e outra, impossível não falar dela, quando os amigos estão na cachoeira.

O roteiro coeso de Temporada é de autoria do próprio André Novais. Com uma narrativa cronológica e simples, vemos claramente as etapas de progresso se sucederem com a ajuda de um vibrante leitmotiv, ou, um motivo condutor. A calma e o comedimento com que o enredo se desenvolve é puro engano: os eventos são ruidosamente desafiadores, mas não vemos desespero. Ao contrário, o que vai preenchendo as lacunas das relações entre o grupo principal de personagens é a esperança. Esperança de dias melhores, de empregos melhores depois de uma temporada como agente de combate à endemias. Mas, essa temporada é longa, e até feridas se curarem ela não vai terminar.

Generosamente, o diretor André Novais faz este compartilhamento das bonitas transformações de Juliana, especialmente, e seus amigos, com os espectadores. Ao final do longa saímos muito felizes pelas conquistas da protagonista. Juliana, uma moradora de Contagem, torna-se uma velha conhecida que admiramos e que ganhou o mundo sob nossos olhos protetores. Tudo de ruim poderia ter acontecido a ela, desde uma picada de um escorpião até um mergulho deprê no isolamento da perda da família, mas ela saiu ilesa. Muito mais forte, mais feminina, mais orgulhosa de si, confiante. Lindamente empoderada.

No 51º Festival de Brasília, este segundo longa de André Novais Oliveira, ganhou também o prêmio como melhor filme, melhor fotografia (Wilssa Esser) e melhor direção de arte (Diogo Hayashi).

Temporada tem estreia prevista para 17 de janeiro nos cinemas de todo o país.
Confira o trailer abaixo:

Sobre Magah Machado

Paulistana, designer e analista de informação, entusiasta de expressões artísticas livres e autênticas na dança, cinema, música e fotografia como motores propulsores de mudanças no mindset careta e convencional