Sementes | Filme mostra legado de Marielle Franco na política feminina, preta e periférica

Documentário esta disponível gratuitamente no site da Embaúba Filmes

O vácuo da morte de Marielle Franco em 14 de março de 2018 foi quase que automaticamente ocupado e aterrado para que logo recebesse sementes. As sementes deram as primeiras flores que começam a desenhar o legado vivo da vereadora ativista dos Direitos Humanos e das mulheres, especialmente as mulheres pretas, na luta contra o fascismo da extrema direita e seus agregados.

A cineasta veterana Júlia Mariano em parceria com Éthel Oliveira conceberam Sementes: Mulheres Pretas no Poder (2020) para retratar este importante processo de marcação de território para as mulheres pretas. Mostram como essas sementes foram plantadas, regadas e afloraram na luta política com e para o povo. Como se viabilizou um momento de 93% a mais de candidaturas de mulheres pretas em relação a eleições anteriores.

O documentário produzido essencialmente por mulheres em funções criativas de destaque e paridade entre brancas e pretas proporciona uma imersão na realidade crua de construção de uma candidatura política. Uma não, seis: Mônica Francisco, Renata Souza, Talíria Petrone, Rose Cipriano, Tainá de Paula e Jaqueline Gomes.

Candidatas a vários cargos no estado do Rio de Janeiro em 2018, o grupo converge em suas bandeiras e modo de fazer política, mas Éthel e Juliana conseguem extrair as delicadas particularidades de cada uma e o que pensam individualmente.

Jaqueline Gomes de Jesus, candidata a Deputada Estadual pelo PT, foca sua campanha com prioridade para o público LGBT por ser uma mulher trans, mas seu discurso é universal. Jaqueline é uma das que não se elege, mas fica claro que carrega em si a verve política necessária para repetir este caminho até conquistar sua vitória.

Jaqueline Gomes

Tainá de Paula é apresentada lançando sua pré-candidatura com festa e dança étnica, com fala clamando por uma política que acolha a mulher preta, especialmente. Ela dá a largada: “Começa hoje a ocupação política e as pretas no poder”.

Tainá de Paula

Na 4ª Marcha das Mulheres Negras, encontramos Talíria Petrone em ação, vereadora por Niterói, a mais votada nas eleições de 2016 em que acompanhou sua amiga Marielle Franco, eleita para a Câmara dos Vereadores do Rio. Descobrimos que o carisma e a energia de Talíria vêm de sua doação integral ao que faz, às pessoas que a cercam e às causas que abraça, enquanto quase silencia sobre a ferida aberta deixada pela perda de Marielle.

Talíria Petrone ergue placa com o nome de Marielle em sua posse na Câmara dos Deputados em 2018

Renata Souza estreia sua campanha a deputada estadual pelo RJ com a ajuda de Talíria e mostra sua boa estratégia tanto na academia pedindo votos dos universitários da Universidade Federal Fluminense (UFF), seus vizinhos, quanto na favela da Maré, onde nasceu e se criou, ao conceder entrevista a uma equipe espanhola. Renata é o elo entre erudito e popular que se repete em todas as candidatas.

Renata Souza

Mônica Francisco, socióloga, foi assessora de Marielle e traz para a cena política a polêmica da religiosidade. É pastora evangélica e aparece orando na Igreja em que é líder, pedindo por democracia e por Deus. Isto é colocado no documentário para contextualizar sua trajetória, porém em certa altura se assume que este fato não deveria ser discutido no debate político por ser de cunho pessoal.

Monica Francisco

É de Rose Cipriano, professora, uma das mais bonitas falas de Sementes:“a gente só consegue mudar essa estrutura (uma casa sem manutenção, abandonada) por que os filhos vão crescendo, estudando, trabalhando”, em uma clara metáfora do brasileiro em relação ao seu comportamento político-cidadão.

Rose Cipriano, ao centro

Entre tantas leituras que o longa proporciona, talvez esta lição de práxis seja a mais contundente. Afinal, todas as seis mulheres mobilizaram sentimentos de frustração e injustiça em processos dialéticos para a auto-organização de uma fatia da sociedade. Mais que um trabalho de base, elas transformaram profundamente relações.

Esta intensidade está exposta na intimidade com que falam tanto a seus aliados, quanto a seus eleitores, ou eleitores em potencial no corpo a corpo das campanhas. O acesso que têm a seu público foi também muito trabalhado há anos até chegar ao resultado que vemos na pequena reunião de lançamento da candidatura de Mônica Francisco. Não há dubiedades nem incertezas no que fazem ou dizem.

O capítulo em especial sobre o engajamento no movimento #EleNão encampado também por essas mulheres não é apenas mais um ato de campanha. É uma pequena maneira de representar o embate já rotineiro contra a supremacia masculina e branca que despreza mulheres pretas num pacote de destruição da civilidade.

Sementes é um filme corpóreo, musical e muito colorido, com uma fluidez na narrativa de apresentação das candidaturas a partir de um evento trágico, sua realização nas ruas com o povo lutando contra candidatos fascistóides e as primeiras vivências das eleitas nos seus campos de poder, afinal. A escolha de apresentar as protagonistas a partir do calendário de comemorações e lutas da mulher preta e da LGBT que transcorreram em 2018 e assim fazer elipses temporais em um crescendo de emoção e expectativa dá muita personalidade ao documentário.

A montagem de Mariana Penedo faz alguma alusão a Camocim (2018), filme da mesma temática que retrata o microcosmos da candidatura de um vereador numa pequena cidade pernambucana sob o ponto de vista de Mayara Gomes, sua jovem e idealista assessora política. Porém, sem o tom poético e intimista que não cabe numa cidade mundialmente partilhada como o Rio de Janeiro.

Algumas cenas se conectam imediatamente com o espectador para reforçar a percepção da roteirista e idealizadora de Sementes, Helena Dias: este longa é um registro de um momento histórico em que testemunhamos mulheres pretas ascendendo da militância de anos para a politica institucional. Ver Mônica Francisco nas gravações de suas peças de campanha nas escadarias da Alerj que lhe lembram o Lincoln Memorial em que Martin Luther King fez seu histórico discurso na Marcha sobre Washington em agosto de 1963 é uma delas.

Outra é o encontro de gerações promovido por Luiza Erundina às recém-eleitas deputadas federais do PSOL. Erundina faz uma festança com suas colegas, e o grupo promove uma catarse coletiva, quando colocam placas de rua com o nome de Marielle nas portas de seus gabinetes.

As questões de ancestralidade da cultura e civilização pretas versus a pulsão contra o racismo e a exploração da hegemonia branca são traduzidas em todos os níveis, signos e formatos para que atinjam todo o tipo de público.

A responsabilidade que essas mulheres assumiram, coletiva e individualmente, de continuar o trabalho da vereadora assassinada em um crime ainda sem o devido esclarecimento, é um aterramento também de outro vácuo no audiovisual que não conta a história de figuras políticas femininas pretas de nosso país. Sementes traz esse jardim urgente em uma iniciativa que deve florir as telas do país inteiro. Quem mandou matar Marielle?

Marielle Presente! Mulheres Pretas no Poder!

Sementes: Mulheres Pretas no Poder estreia gratuitamente em 7 de setembro a partir de 19h no site da Embaúba Filmes: https://embaubafilmes.com.br/locadora/sementes/

Sobre Magah Machado

Paulistana, designer e analista de informação, entusiasta de expressões artísticas livres e autênticas na dança, cinema, música e fotografia como motores propulsores de mudanças no mindset careta e convencional