Por que o aborto incomoda mais que o estupro em uma criança de 10 anos?

A cultura do estupro e desvalorização da mulher contribui para a normatização do controle do corpo feminino.

E bem provável que alguém já tenha te questionado: Você é contra ou a favor do aborto? Provavelmente também, quem te perguntou esperava um sonoro “Eu sou contra” de sua parte. Por ser um tema que carrega imposições religiosas, por muito tempo foi empurrado goela abaixo que deveríamos repudiar essa atitude, mas nunca nos explicaram motivos pra isso.

Voltando um pouco a história, até o século XVIII o feto era visto como parte do corpo feminino, sendo assim, maternidade, gestação, parto e aborto eram assuntos privados às mulheres, nesse mesmo período nem as mulheres e nem os fetos eram colocados no mesmo plano dos homens, logo, tais assuntos não eram tão importantes assim. A prática do aborto era relacionada muitas vezes à prostituição, adultério e/ou para salvar a vida da mãe, feito sempre por mulheres.

Para seguirmos a cronologia dos fatos, é importante lembrar que mulheres não tinham direito à estudo. No Brasil, esse direito foi alcançado em 1879, e a primeira formada foi Rita Lobato Velho Lopes em 1887.

Então, a partir do século XVIII com homens alcançando conhecimentos científicos e médicos, as mulheres passaram a perder forças sobre os saberes de seu próprio corpo e sobre a reprodução, inclusive as próprias parteiras tiveram ações restringidas, passaram a ser vistas como incapazes de realizar um procedimento tão arriscado (partos e abortos). Diante dessa reformulação, qualquer complicação que levasse o feto a morte, seria digno de punição.

Durante o século XIX, o homem passou a se importar mais com o feto, não por conta de sua saúde ou pelo fato de seu nascimento, mas sim porque era visto como um futuro herdeiro, e esse é o motivo principal em manter o controle do corpo das mulheres em relação ao aborto. Como se toda a autonomia da mulher não fosse o suficiente, agora o útero era de exclusividade de seu cônjuge.

Ilustração de Helô D’Angelo

No século XX, principalmente pela diminuição de nascimentos, o Estado age diretamente punindo qualquer mulher que realizasse o abortamento. Nesse mesmo período, surgiram pessoas especializadas em aborto, mesmo sendo uma prática ilegal. Contudo, interferir nos ganhos do estado e da igreja era uma afronta, por isso as punições foram mantidas mesmo sendo de forma segura para a mulher. Novamente vemos que a saúde da mulher não era tão notada, e o que importava era o homem e tudo que estivesse ligado a ele.

Com o aparecimento de métodos contraceptivos, preservativos e o feminismo, os nascimentos diminuíram ainda mais, w mais uma vez para evitar ao máximo a prática, o aborto passou a ser equiparado como homicídio.

No Brasil, o aborto é visto como delito do Codigo Penal desde 1940 com exceções: quando a gravidez é resultado de estupro (a mulher tem o direito de escolher interromper a gravidez ou mantê-la), para salvar a vida da mulher e, a partir de 2012, gravidez de feto anencéfalo (a mulher tem o direito de optar pelo prosseguimento da gestação ou por interrompê-la). Porém, somente em 1989 foi aberto o primeiro serviço de atendimento às mulheres para o aborto legal, na cidade de São Paulo, que permaneceu como único até 1994.

A prática do aborto sempre existiu, a questão social é o que difere cada mulher que opta por ele: mulheres ricas viajam para países onde a prática não é crime e pagam clínicas especializadas; mulheres de classe média se auto medicam e passam por momentos dificílimos; e mulheres pobres morrem em clínicas clandestinas, com procedimentos não indicados ou por preconceito na fila dos hospitais públicos.

Quando falamos sobre políticas públicas, incluímos: educação sexual para crianças e adolescentes que oferece informações para evitar de abuso à transmissão de DSTs, autoconhecimento, poder para que a mulher escolha acima de qualquer crença ou cultura se ser mãe é algo que ela realmente quer.

Em pleno século XXI, a legislação feita por homens e ainda executada por eles em sua maioria, o corpo da mulher continua sendo visto como propriedade, e é reduzido a instrumento passivo, tirando a possibilidade de decisão própria, mantendo a crença que a mulher deve aceitar a geração de uma vida, mesmo que isso seja contra sua vontade, e essa obrigatoriedade inclui mulheres de todas as idades, inclusive recentemente, uma criança.

Recentemente, após o estado do Espírito Santo se negar a prestar auxílio a uma menina de 10 anos que encontrava-se grávida por 22 semanas, foi necessário acionar a justiça. A criança era abusada desde os 6 anos por um estuprador, seu tio. É dever do estado amparar e acolher, porém, ao ser levada à Recife para realizar o procedimento teve sua história exposta por fundamentalistas e pessoas voltadas à política. Mesmo com 2 dos 3 requisitos para o procedimento legal, deputados eleitos convocaram a comunidade católica e se colocaram em ação nas redes sociais para expôr a vítima e os profissionais que realizaram o aborto, além de se reunirem na frente do hospital gerando tumulto e barulho, o que é proibido por ser importunação.

O estuprador de 33 anos, conhecido como o tio da menina, foi encontrado após dias desaparecido. Curiosamente, não foram realizados protestos ou manifestações contra ele, mas o grupo religioso se revoltou contra a criança, que com apenas 10 anos foi chamada de assassina.

Esse silêncio nos mostra mais ainda como a manipulação é assertiva, onde uma doutrina não permite o questionamento e reforça um comportamento antiquado, onde mesmo quando a mulher necessita de amparo, o estado a vê como não merecedora de escolha e muitas vezes culpada pelos ocorridos.

De acordo com o livro “História das mulheres no Brasil” organizado por Mary del Priore, o corpo da mulher ainda é reduzido à sua capacidade de reprodução e o pensamento religioso afirma a cada dia que a mulher não é um ser dotado dos mesmos direitos que o homem e sim “um mecanismo criado por Deus exclusivamente para servir à reprodução”

A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. A cada 1 hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas. 75,9% das vítimas possuem vínculo familiar com o estuprador. O corpo da mulher é visto como propriedade privada, pertence aos homens, ao estado, a igreja, a família, a todos, menos a ela.

Em uma sociedade machista, patriarcal e fundamentalista, nos vemos diante a situações absurdas como essa, onde a manifestação que gera tortura psicológica à uma criança de 10 anos que carrega o fardo da culpa de ser mulher – já que muitas pessoas vieram a público questionar o seu consentimento – é mais importante do que a exigência de políticas públicas direcionadas para amparar mulheres e a penalização de estupradores.

Sobre Mell Gomes

Diferente de Belchior, adora uma teoria, mas concorda quando ele cita em "Alucinações" que amar e mudar as coisas interessam mais. Professora, programadora e paulistana. Atualmente reside em Jundiaí/SP. Insiste na disseminação da informação de forma didática e acessível. Idealizadora do projeto Foi abusivo porque, que abre espaço para debates transparentes sobre temas direcionados à mulher e relacionamentos afetivos